O primeiro homem do mundo, o Adão na tradição judaico-cristã, não nasceu num bairro, numa cidade, num estado, num país nem num continente. Nasceu num planeta que posteriormente foi dividido em países por questões políticas, econômicas e ideológicas, em meio a guerras de conquista e conflitos de terras. Mas o planeta permaneceu o mesmo, desde sempre. Nós moramos numa bola azul, solta no espaço, com 70% de sua superfície coberta de água, por onde correm ventos, crescem florestas e savanas, nascem árvores e bichos de todo tipo. Inclusive um bicho muito estranho. Uma espécie que se diz inteligente, mas é a única que bate nos filhos e os machos maltratam e matam as próprias fêmeas, além de destruírem a natureza que lhes garante a vida.
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Esta abertura propositalmente piegas é um chamariz para um fato muitas vezes desprezado quando os governos tratam das questões ambientais: o planeta Terra é um só. Por mais que tenha sido retalhado em países, muitos deles em conflito, a velha Terra continua una e indivisível. Os rios e os ventos não dão a mínima para fronteiras. O Nilo, por exemplo, nasce no rio Kagera, no Burundi, e de lá segue por Uganda, Tanzânia, Ruanda, Sudão, Sudão do Sul, Etiópia e Egito. O Amazonas nasce nos Andes do Peru e de lá passa pela Colômbia até chegar ao Brasil. Em sua bacia hidrográfica estão também a Bolívia, o Equador, a Venezuela e a Guiana. E então: dá para dizer a quem pertence o Nilo? Ele é do Egito? E o Amazonas é mesmo um rio do Brasil? Ou os dois são propriedade… do mundo? Os ventos também não têm o menor respeito pelas fronteiras geográficas. Sopram onde querem, vão aonde querem, aquecem ou esfriam o que querem e quando querem. O Siroco é um bom exemplo. É um vento que vem do Saara e chega a velocidades de furacão no sul da Europa e no norte da Espanha. Provoca secas na costa norte da África, tempestades no mar Mediterrâneo e tempo úmido e frio na Europa.
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Ou seja: queiram ou não os governantes de quaisquer matrizes político-ideológicas, estamos todos, em todo o mundo, irremediavelmente interconectados pelas condições naturais. Não há como falar em autonomia e soberania de países quando se trata de questões ambientais. No nosso caso, temos a obrigação de cuidar do Amazonas e da floresta amazônica não por serem nossos, mas porque pertencem a um planeta onde TODOS moramos. Em 1963, o meteorologista Edward Lorenz do Instituto de Tecnologia de Massachussetts publicou um artigo demonstrando que uma mudança sutil numa condição atmosférica pode determinar mudanças inesperadas a milhares de quilômetros de distância. O título de uma palestra dele ficou famoso: “Previsibilidade: O bater das asas de uma borboleta no Brasil pode iniciar um tornado no Texas?”. Foi um pulo para se popularizar a expressão “Efeito borboleta”.
A constatação do óbvio – estamos todos a bordo de uma nave que gira pelo espaço – permite a conclusão de que o retumbar dos punhos cerrados no peito dos líderes arrogantes bradando que tal rio é “nosso!” e tal floresta é “nossa!” e portanto podemos fazer com o rio e com a floresta o que nos der na telha é uma grossa e irresponsável falácia. As divisões políticas nada podem diante da natureza. Ela é uma só. Justamente por isso, variadas nações observam com enorme preocupação o quadro de devastação na floresta Amazônica, que de agosto do ano passado a agosto deste ano registrou um crescimento de 34,5% no desmatamento. Só a título de comparação, é como de um ano para outro sumisse do mapa uma área de floresta correspondente a duas vezes a área do Distrito Federal.
Esse quadro da devastação, resultante principalmente de queimadas ilegais e garimpagens predatórias, vem afetando a imagem do Brasil no exterior mas, ultimamente, vem provocando sérios prejuízos comerciais ao Brasil. Empresas estrangeiras vêm anunciando boicote a produtos agropecuários brasileiros e grandes investidores anunciam a retirada de recursos de companhias que compram produtos de áreas abertas ilegalmente. Ou seja: lá fora, muita gente está de olho no “efeito borboleta”. Os maiores conglomerados e os grandes fundos de investimento incorporaram aos seus protocolos de incentivo os cuidados ambientais. Não vão mais investir nem comprar produtos de quem degrada o meio ambiente.
Mas o governo brasileiro, confrontado com o problema, reage de forma arrogante. Durante evento no Aspen Institute, ao ser confrontado com os números do desmatamento, o ministro da Economia Paulo Guedes disparou contra os norte-americanos dizendo que os militares brasileiros entendem as preocupações deles porque “vocês (os americanos) desmataram suas florestas”. Argumento pueril e pretensioso. Como se resolvesse alguma coisa dizer que, se a suçuarana norte-americana foi extinta, ninguém tem que se meter na falta de ação do governo brasileiro para evitar a extinção da nossa onça-pintada.
Na mesma toada, o vice-presidente Hamilton Mourão, chefe do Conselho Amazônia, diante das denúncias de garimpagem ilegal na floresta, disse que os garimpeiros são os indígenas que moram lá. E defendeu um suposto direito de eles praticarem a garimpagem por meios próprios. Em momento algum o vice-presidente falou em apoio governamental para os índios praticarem o garimpo dentro do que preceitua a atual legislação. Ora, e quem garante que índios minerando ouro sem qualquer orientação técnica, não seriam tão predadores quanto não-índios realizando a mesma atividade? Além disso, diante dos números do desmatamento apontados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) Mourão teve o desplante de colocar em dúvida os sistemas de monitoramento brasileiros, que segundo ele “não são os melhores”. Claro, se o INPE apresentasse números que apontassem queda no desmatamento ele estaria era aplaudindo a precisão dos mecanismos de monitoramento. Que, aliás, lembre-se, já teve um diretor demitido por Bolsonaro, Ricardo Galvão, justamente por ter revelado números “inconvenientes” sobre áreas devastadas. Se a notícia é ruim, enforque-se o mensageiro.
Numa palavra: é preciso sair do velho e batido ato reflexo de se defender arrogantemente da devastação apontando os erros dos outros. E começar a levar a sério, tratando como investimento e não como despesas os recursos e ações de governo aplicados na proteção ambiental. Área preservada não é mais sinônimo de inatividade agrícola, é sinônimo de commodity. Vale dinheiro, muito dinheiro. Sem falar que, até por uma questão de nos reconhecer como habitantes de um único planeta, somos todos – todos, de qualquer raça, país, credo ou ideologia – responsáveis pela sua preservação. Os rios e os ventos não são do Egito, do Brasil nem de qualquer país: são propriedade do mundo.
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