“Deus! Oh, Deus! Onde estás que não respondes?
Em que mundo em que Estrela tu te escondes?
Embuçado nos céus?
Há 2000 anos te mandei o meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito…
onde estás Senhor Deus?”
Nestes versos o poeta Antônio de Castro Alves narra as desventuras dos filhos da África e busca a misericórdia divina responsabilizando Deus pela desventura de ver seus filhos arrancados de sua pátria mãe escravizados e lançados ao desamparo. Sem dúvida somos seus herdeiros. Somos herdeiros de uma história que mudou os rumos da história, da cultura e das ciências no mundo. Somos herdeiros de um povo que enriqueceu, encantou e embelezou este país com suas cores cantos e danças.
A primeira parte da história acontece antes que os navios negreiros atravessassem o Atlântico repletos de carnes negras vivas prontos para a venda como mercadoria mais cara do mundo. Há uma parte da história forjada pela miséria e a tristeza da perda da dignidade humana. A outra parte desta mesma história é mais difícil de ser contada porque esta parte da história se revela nas subjetividades que mudam o sentido e o destino do que parece uma realidade indiscutível. Trata-se da história que sobreveio quando a palavra se fez desnecessária.
Leia também
“Stamos em pleno mar. Do firmamento os astros saltam como espumas de ouro quem sabe o rumo se é tão grande o espaço”
Continua o poeta na viagem que parecia sem fim.
“Do mundo conhecido sentia-se apenas o lugar onde o mar se encontra com o firmamento.”
Paradoxalmente, na separação da pátria mãe e a incerteza do destino foram criados outros tipos de vínculo em circunstâncias jamais imaginadas. Foi em pleno mar que nasceram as relações malungas, quando se juntaram os irmãos do mesmo barco e quando tudo parecia se encaminhar para a morte inexorável da alma de um povo. É justamente esta nova e miserável condição em pleno mar que produz a semente para o florescimento do que mais tarde se organizaria como grupo de negros fugidos, quilombos, as irmandades católicas, os cantos de trabalho, os jongos, congadas, maracatu e tudo o que ainda nos reúne como células de resistência para a vida em liberdade.
Como aconteceu esta caminhada? Hoje temos leis que obrigam a escola a contar a verdadeira história da relação Brasil-África. Longa tem sido a caminhada histórica e a luta pelos direitos à educação que estamos alcançando parcimoniosamente. Hoje podemos celebrar a vitória do direito de nos reunir e nos fazer ouvir e falar da educação como nós queremos. Ainda não é o suficiente.
Precisamos contar para os jovens e crianças o que somos como povo preto de santo e que nos organizamos em casas e muitas famílias nascidas da dor do desejo de liberdade.
As alianças silenciosas do navio negreiro deram lugar à muitas formas de luta de onde brotaram esquadras e mais esquadras de navios guerreiros. Nos navios negreiros cada pessoa escravizada carregava consigo as marcas da força e ancestralidade com a sua própria história trancada no peito como único bem. Precisamos contar que a morte também viajou de navio e era enxotada pela audácia de negras e negros que teimavam em viver a qualquer custo. Não faltou coragem inteligência e aceitação do outro com línguas pátrias e culturas diferentes.
Ao longo dos séculos muitas outras alianças foram realizando na forma de quilombos urbanos, blocos afros, terreiro de candomblé desempenhando novos papéis. Quem diria que as nossas alianças chegariam ao que somos e representamos neste momento? Foi e tem sido muita luta para chegarmos até aqui. O sonho agora não é mais um sonho dantesco.
Durante séculos os nossos ancestrais construíram este país. Hoje há exatos 136 anos de quando todos os brasileiros se tornaram juridicamente iguais pela lei da abolição. Apenas juridicamente e mais nada. Foram grandes os esforços para provocar pelo menos a nossa visibilidade. Hoje o governo nos convoca e pergunta o que queremos como política pública. Este é um dos sinais éticos do nosso tempo. Ético é perguntar. Ético criar condições para que o outro possa falar de suas necessidades.
O outro somos nós, brasileiros e brasileiras dos mais diversas cantos deste país. Muito temos falado entre nós. Há muitas décadas estamos nos organizando para o diálogo objetivo até sermos considerados parte da sociedade civil para lutar por políticas públicas necessários para nossa gente sem distinção. Estamos aqui e não mais para falar do sonho dantesco do navio negreiro, não é mais para falar do tinir dos ferros ou do instalar do açoite no navio negreiro. Estamos aqui para pensarmos juntos sobre a relação entre diversidades e as políticas no Brasil contemporâneo. Estamos aqui reafirmando na nossa condição de cidadãs e cidadãos que sonham com um país vez mais nação democrática e pátria amada.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para redacao@congressoemfoco.com.br.