por Leonardo Rossatto Queiroz*
Todas as vezes que alguém chega para a discussão envolvendo evangélicos e a política, toma uma postura generalizante, reafirma estigmas e faz a discussão recuar uns dez anos. O autor da vez foi o jornalista e escritor Marcos Augusto Gonçalves, que, de posse de uma coluna na Folha de São Paulo (link para assinantes), perguntou se a sociedade deveria dialogar ou enfrentar os evangélicos. Sim, com essas palavras.
De novo, são vistos os mesmos argumentos fracos que qualquer um que estuda ou convive com evangélicos critica: evangélicos não podem ser homogeneizados como se todos fossem iguais, e as “soluções” não podem ser propostas com o ar de superioridade que a intelligentsia brasileira insiste em ter em relação aos evangélicos.
Infelizmente, o tal “atraso de dez anos” é quase literal: em 2015, eu mesmo já estava rebatendo esses argumentos homogeneizantes em um texto sobre o contexto da época, em que a conclusão era tão simples quanto contundente: evangélicos querem ser compreendidos em sua complexidade. Querem ser respeitados em suas diferenças internas, manifestando essas diferenças para a sociedade sem estigmas. Obviamente, ninguém entendeu isso naquela época. E nem mesmo o fato de que 7 a cada dez evangélicos apoiaram Jair Bolsonaro nas eleições de 2018 trouxe qualquer mudança para o cenário. Os evangélicos seguem sendo a massa disforme, o ponto aberrante no jogo político brasileiro.
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É por isso mesmo que eu me disponho, mais uma vez, a desmontar o argumento catastrófico de “dialogar ou enfrentar”, que segue interditando qualquer ação política efetiva no meio evangélico, o que facilita enormemente o esforço da extrema direita em conseguir novos adeptos entre os evangélicos, que não pára em nenhum momento: pastores e políticos bolsonaristas (às vezes as coisas se confundem, visto que muitos pastores também são políticos e vice versa).
Por que “enfrentar evangélicos” é errado?
Talvez essa parte em específico seja óbvia demais, e, se você também considerar isso, caro, leitor, peço que pule diretamente para o próximo tópico do texto. Mas a realidade é que estamos diante de um movimento prejudicial de todos os ângulos possíveis.
Como já dito, estigmatizar o evangélico em uma massa disforme só já é por si só uma simplificação grosseira, denotando antes de tudo desconhecimento em quem insiste em usar esse argumento. E ao admitir “ah, mas existem alguns evangélicos que são diferentes dentro da igreja”, o autor só agrava um argumento que já é ruim: ao sugerir o enfrentamento aos evangélicos, de forma genérica, o Marcos Augusto Gonçalves (e muita gente que veio antes, não é privilégio dele argumentar assim) fala que sim, é admissível jogar a água da banheira fora com a criança dentro.
Como se isso já não fosse grave o suficiente, o mero uso de um argumento desses tem o efeito imediato de validar o uso da retórica de perseguição religiosa pelos líderes evangélicos reacionários que querem vender associação automática com o projeto político bolsonarista. É praticamente um presente para esses líderes verem um jornalista escrevendo na Folha de São Paulo: “Devemos enfrentar os evangélicos?”. E isso por um motivo simples: a retórica da perseguição religiosa é essencial para que esses líderes promovam radicalização política em seus cultos.
A mera ideia de perseguição religiosa, junto com um pouco de teologia questionável, faz com que esses pastores reacionários coloquem suas igrejas no mesmo patamar das igrejas do Novo Testamento que eram perseguidas por Roma. Essa mistura entre teologia e política é o que deu milhões de votos para Bolsonaro entre os evangélicos nas últimas semanas antes do primeiro turno de 2018. Qualquer pessoa com algum alcance que não deseja ver o bolsonarismo como força política hegemônica no país e tenha o mínimo de bom senso não pode alimentar esse tipo de argumentação.
Além disso, essa homogeneização estigmatizadora simplesmente ignora o fato de que de dentro da Assembleia de Deus saíram pessoas tão diferentes quanto Marina Silva e Silas Malafaia. E valida que o modelo de evangélico enxergado pela sociedade é o do Silas Malafaia, e não o da Marina Silva. É outro presente para os pastores reacionários. Porque o Silas Malafaia está há décadas tentando se vender como “a voz que representa os evangélicos”, até como um meio de calar vozes dissonantes. A Marina Silva nunca se propôs a isso, mesmo tendo a importância política que tem. Ao estigmatizar o evangélico no “modelo Silas Malafaia”, o autor faz o enorme favor de validar o argumento do Silas Malafaia de que de fato ele é “representante dos evangélicos na sociedade”.
Numa tacada só, o reacionarismo evangélico é validado, o discurso exagerado de perseguição religiosa passa a ter um argumento concreto para chamar de seu e as vozes dissonantes são caladas. Tudo isso porque algum jornalista resolveu escrever na Folha de São Paulo uma manchete “Devemos enfrentar os evangélicos?”.
Por que “dialogar com evangélicos” é errado?
Falar que “é preciso dialogar com os evangélicos”, ainda mais quando a outra possibilidade é “enfrentar os evangélicos”, é uma postura tão arrogante que lembra a postura de colonizadores chegando para conversar com povos originários. “Precisamos civilizar esses povos primitivos” é um argumento que sairia tanto da boca do colonizador quanto da boca da intelligentsia blasé que se dispõe a descer do pedestal e a conversar com os evangélicos, como se isso fosse um grande favor.
Existe outro fator que faz com que essa conversa já nasça condenada ao fracasso: ao dizer “devemos dialogar com evangélicos?”, você coloca automaticamente o evangélico (com todo aquele estigma e toda aquela homogeneização prévia) no papel de “outro”. Isso é praticamente uma garantia de que, se houver algum diálogo, ele não vai levar a lugar algum.
O evangélico brasileiro se caracteriza por ser praticante, quando não prosélito. Essa prática constante da convivência em espaços religiosos, juntamente com a popularização de modelos teológicos maniqueístas (Teologia da Batalha Espiritual, Teologia do Domínio), levam grande parte dos evangélicos a levantarem uma parede contra tudo aquilo que “vem de fora”. Em um contexto em que existe uma discussão séria em muitos meios evangélicos sobre se o evangélico deve ou não ouvir “músicas do mundo”, qual é a possibilidade dos membros dessas igrejas darem o mínimo de abertura para alguém de fora que chega com uma abordagem colonialista em relação aos evangélicos? Praticamente nenhuma.
- nota do autor: “Músicas do mundo” são uma denominação dada dentro do meio evangélico a qualquer música que não seja criada no contexto da igreja. Qualquer música que não seja “louvor” e não preste de forma direta adoração de Deus. Basicamente, a música popular. Muitas igrejas proíbem ou desincentivam o consumo de músicas populares porque, de acordo com essas igrejas, elas passam mensagens “contra o Evangelho”.
Aqui, voltam os argumentos do tópico anterior: com qual evangélico se deve dialogar? Pelo argumento do autor (infelizmente se fosse só do autor esse texto não seria necessário), o modelo de evangélico é justamente o reacionário influenciável pelo bolsonarismo mais radical. Mais uma vez, isso valida o argumento dos reacionários que se vendem como “representantes do povo evangélico”. Quem tenta reduzir os evangélicos a uma massa disforme são os líderes reacionários, que tentam reduzir a fé de 30% da população política a mero capital político de um projeto de extrema direita. Ao eleger esses políticos como interlocutores, essa intelligentsia facilita o projeto desses líderes. E, mais uma vez, sufoca as vozes dissonantes dentro da própria igreja.
A identidade evangélica e a luta interna por protagonismo
Ser evangélico é uma identidade pela qual muitos cristãos estão dispostos a sofrer. O meio progressista, em tese, não tem problema em reconhecer isso em relação a outros grupos dentro da sociedade, no que faz muito bem inclusive. Mas teima em não reconhecer o evangélico como uma identidade, e muito menos em reconhecer o evangélico como uma identidade diversa e multifacetada. Identidades religiosas em geral são algo tão profundo que dizem respeito não apenas a como a pessoa se enxerga no mundo, mas também em um suposto pós-vida. Negar a legitimidade dessa identidade como se isso fosse fruto de uma mera manipulação retórica de pastores inescrupulosos é um desrespeito sobretudo a quem compartilha essas identidades religiosas.
É por isso que qualquer solução possível em um contexto em que evangélicos tendem a ter diálogos honestos apenas com quem compartilha a mesma fé é justamente a de dar protagonismo aos evangélicos que se identificam com posturas mais progressistas. E de forma honesta, diferentemente do que tem sido feito, em que evangélicos progressistas aparecem como meros tótens em campanhas eleitorais, no melhor estilo “vejam como eu respeito os evangélicos, até tenho amigos que são”.
Ainda que pareça algo contraditório, os evangélicos não são homogêneos, mas compartilham a mesma identidade. Os inúmeros problemas relacionados aos evangélicos no Brasil hoje não estão ligados necessariamente a essa identidade, mas a posturas condenáveis ligadas a indivíduos ou a grupos específicos. Essas posturas individuais envergonham quem se identifica como evangélico, mas não são suficientes para os evangélicos abandonarem sua fé.
Mais importante que isso, porém, é o fato de que “evangélico” não é a única identidade do evangélico. E reduzir o evangélico a um “evangélico”, como se ele coubesse dentro de um estigma, só favorece a extrema direita, que se arroga como representante evangélica sem que haja de fato um contra-discurso organizado. É preciso organizar esse contra-discurso.
Quem tem que protagonizar esse contra-discurso? Certamente não são os intelectuais que estão do lado de fora bradando soluções simplistas e contraproducentes. São os evangélicos que não compactuam com a extrema direita, que seguem sendo mais de 30% dos evangélicos mesmo em um cenário que frequentemente é de intimidação por parte dos líderes. Esses 30% de evangélicos estão na sociedade civil organizada, nas empresas, no comércio, no serviço público, nos partidos políticos. O papel dos grupos progressistas é entender que não pode existir diálogo entre evangélicos e progressistas porque evangélicos são parte dos progressistas e progressistas são parte dos evangélicos. Quando você é parte, você não dialoga, você vivencia. E é na vivência que o contra-discurso que fará frente ao reacionarismo evangélico será desenvolvido e aplicado. Enquanto os grupos progressistas não entenderem isso, estaremos sujeitos a discursos que tratam o evangélico como uma massa disforme, homogênea e incapaz de pensar por si mesma.
* Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
* Leonardo Rossatto Queiroz é cientista social pela Unicamp, pós-graduado em Cidades Inteligentes e Sustentáveis pela Uninove, doutor em Ciências do Sistema Terrestre pelo Inpe, especialista em Políticas Públicas no governo do estado de São Paulo e mestre em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC. Pesquisa implementação e avaliação de políticas públicas, perfil político de grupos religiosos e ação institucional contra as mudanças climáticas em escala municipal.
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