Em um momento em que até em países com ditaduras se viu algum esforço para salvar vidas, é grave testemunhar o Brasil perdido, em absoluto caos político e incapaz de responder adequadamente à pandemia da covid-19.
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Desde o final de janeiro, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou emergência sanitária por conta do novo coronavírus SARS-Cov-2, de alta letalidade, o órgão passou a apresentar medidas para minimizar um impacto que, previa-se à época, poderia ser devastador. Ao soar o alerta de pandemia, em 11 de março, seu diretor executivo, Tedros Ghebreyesus, foi enfático em sua mensagem aos países: “Preparem-se, detectem, protejam, tratem, reduzam o ciclo de transmissão, inovem e aprendam”.
E não havia por que duvidar: a OMS, como se sabe, é a maior autoridade em saúde do mundo, com profissionais que se destacam pela defesa da saúde das pessoas e do planeta. Ainda assim a entidade, com orçamento previsto de US$ 4.84 bilhões para 2020-2021, sabidamente insuficiente para responder aos inúmeros desafios pré covid-19, foi duramente atacada pelos Estados Unidos, que cortou US$ 480 milhões de sua contribuição, numa evidente manobra para encontrar culpados externos pela falência da própria resposta doméstica à pandemia.
O Brasil está entre os 194 países que se comprometeram a agir em conjunto com a OMS, especialmente no caso de uma emergência global e devia, portanto, ter seguido seus protocolos que, na ausência de tratamento e vacina, tentam reduzir o número de infecções e a quantidade de óbitos decorrentes da covid-19.
Adotar tais orientações seria o caminho sensato, pois, ao contrário das mentiras de seus detratores – entre eles o chanceler brasileiro Ernesto Araújo, um tumor maligno hoje a destruir o Itamaraty –, a OMS atua em estreita parceria com os países e exemplo disso é o próprio Brasil que, até março deste ano, acumulava uma dívida de US$ 32,4 milhões, mas segue com assento oficial em suas instâncias de monitoramento e consulta, espaço onde se constroem consensos a partir de trocas e análises de dados em colaboração com ministérios de saúde de todo o mundo.
Mas, enquanto países sérios reconhecem que ter uma robusta Organização Mundial da Saúde em ação é uma das principais lições aprendidas com o novo coronavírus (novas doações foram feitas para compensar a perda dos recursos dos EUA), no Brasil, apesar das tentativas de alinhamento orquestradas pelo ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, falhamos em diferentes etapas. E desde a sua saída, causada por evidente ciúme do presidente da República, os piores cenários previstos passaram a se concretizar, com Jair Bolsonaro não apenas ignorando as recomendações das autoridades sanitárias como, muito grave, desestruturando o próprio Ministério da Saúde – o substituto de Mandetta ficou menos de um mês e há quase duas semanas temos apenas um interino.
Sem a menor responsabilidade, ele segue estimulando o contato entre as pessoas, adota teses insustentáveis e, pasmem, tornou-se garoto-propaganda de um medicamento não-recomendável que pode agravar a situação de pacientes e até levá-los à morte.
Assim, ao longo dos últimos três meses, vimos o presidente do Brasil enterrar, sem a menor empatia e com piadas incabíveis, todos os esforços de contenção da covid-19. Ele jogou fora todas as oportunidades de nos preparar, de forma mais coordenada, para uma entrada menos turbulenta nesta fase, que já se sabia ser necessária, de tranca-ruas. Ainda não chegamos sequer ao pico da pandemia mas chegamos, sem dúvida, ao limite da tolerância com o desinteresse do governo federal em assumir seu papel diante da maior emergência de saúde pública que jamais se enfrentou. Sem tomar decisões orientadas pela ciência, pilhas de evidências do seu descaso se somam hoje às pilhas de corpos enterrados solitariamente, todos os dias, em todo o país.
Chegado maio, seguimos perdendo tempo e vidas e nos tornamos foco de preocupação da comunidade internacional, preocupado com as equivocadas decisões e galhofas inapropriadas da maior autoridade nacional, como embasadamente pontuou a The Lancet, a mais longeva e respeitada revista científica do mundo. Vários países da região fecharam fronteira conosco e até os Estados Unidos baniram a entrada de brasileiros/as ou viajantes estrangeiros que tenham por aqui passado. O fato é que assistimos estarrecidos a Presidência da República disputar com a covid-19 o posto de inimigo publico nº 1 do Brasil, desviando a atenção das instituições nacionais do objetivo maior de vencer a pandemia.
Além do desafio político, vale lembrar que quando o Brasil decretou a calamidade pública em março, pondo todo o sistema de saúde em alerta, nós, que atuamos na área, já sabíamos o tamanho do desafio que seria enfrentar a covid-19 com o Sistema Único de Saúde longe de sua capacidade total e, assim como a OMS, sem os investimentos necessários, especialmente desde a aprovação da Emenda Constitucional 95, uma ideia de contenção fiscal antipatriótica popularizada com o nome Teto de Gastos.
Como mostra a campanha #AcabaTetoDeGastos, lançada pela Coalizão Direitos Valem Mais, do qual o Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 é membro, quando SARS-Cov-2 aqui desembarcou, talvez em uma roupa chique no aeroporto de São Paulo, o Brasil já estava com um sistema de saúde pública adoecido que a cada ano precisava atender mais pessoas, com menos recursos: nos últimos dois anos a população aumentou em 3,2 milhões de pessoas, mas, por causa da EC 95, a saúde pública perdeu, no período, investimentos da ordem de R$ 30 bilhões.
A história é conhecida. Com o país saindo de PIBs negativos em 2015 e 2016, o governo Temer se aproveitou de um parlamento despreparado e em parte indiferente às necessidades da população brasileira, consolidando uma falsa narrativa de que este era o tipo de teto de gastos que o Brasil precisava. Já no primeiro trimestre vimos, ao contrário da narrativa do ministro Paulo Guedes, um economista de visão obsoleta e pouco capaz, o país não estava pronto para decolar, ele patinava, escorregando em um crescimento de 1,1% no PIB de 2019, apelidado de “pibinho”, sem que se apresentasse nenhuma alternativa capaz de nos recuperar da recessão iniciada seis anos atrás. Neste sentido, vale ler a análise do Inesc sobre o orçamento público federal e a impossibilidade de áreas estratégicas reagirem eficazmente na batalha contra a covid-19.
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Com o SUS sofrendo ataques verbais e financeiros, com deficiência de pessoal, equipamentos, infraestrutura ou insumos suficientes para responder à covid-19, com o tecido social em frangalhos e a economia em queda livre, nunca foi tão necessário ao país uma gestão de bom senso, capaz de valorizar o trabalho em equipe, coordenar os entes federativos e intensificar a cooperação internacional.
No entanto, é quase de queixos caídos que nos deparamos com um Ministério da Saúde atado e um Poder Executivo especialista em criar novos conflitos: o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril apenas tornou público o que já se sabia, que o foco do primeiro escalão do governo brasileiro não é cuidar das pessoas e do país, mas sim tirar proveito de uma terrível calamidade para desregular políticas públicas que levaram décadas para começar a responder aos imensos desafios socioambientais e econômicos que o Brasil já enfrentava antes da pandemia.
A situação agora é tão grave, tão grave que, apesar de não caber em um artigo, passou a ser registrada pelo Pacto pela Democracia, que passou a monitorar os ataques sequenciais do governo central ao Estado de Direito e à Constituição. Além dos interesses privados questionáveis desses agentes públicos, ali se comprova que as mais importantes autoridades nacionais, o presidente incluído, além de não acumularem capacidade cognitiva para lidar com a pandemia, atuam com irresponsabilidade e sem o mínimo decoro, empenhadas em fazer a única coisa em que são peritas: instaurar o ódio e tramar contra as instituições públicas que tentam reagir ao novo coronavírus.
Obviamente, ter uma nação vilipendiada pelo governo eleito seria inaceitável em qualquer país democrático. Mas ver este governo fazer isso em meio a tantas crises é surpreendente, espero, até para muitos de seus eleitores. Tal situação exige resposta à altura dos demais poderes da República. Falo do uso da força da lei que lhes compete, pois não se sana uma situação tão complexa como esta com simbólicas notas de repúdio.
Diante dessa emergência, com 211 milhões de pessoas para cuidar em território de mais de 8 milhões de quilômetros quadrados, a ausência de uma coordenação central do governo federal precisa ser enquadrada e as instituições que silenciarem serão cúmplices de tal desmantelo. É urgente impedir que o presidente Jair Bolsonaro e seus ministros sigam atrapalhando a ciência, evitando que o país enfrente a pandemia com maior eficácia. E para isso não precisamos de golpe, a Constituição Federal do Brasil basta. Apenas sigam a lei.
No momento em que escrevo, já somos o segundo país do mundo em número de casos, com mais de 400.000 pessoas infectadas e 26.754 vidas perdidas para a covid-19. Um maio verdadeiramente sombrio.
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