A aprovação em regime de urgência, pela Câmara dos Deputados, do projeto de lei que flexibiliza o controle e a aprovação de agrotóxicos no país escancara uma contradição na discussão sobre a importância do processo de avaliação dos produtos sanitários, que hoje está no centro do debate nacional – e mundial – por conta da agilização da liberação das vacinas para conter a Covid-19.
A pandemia projetou a importância dos órgãos de controle, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), bem como a necessidade de informatizar e reduzir a burocracia em torno de qualquer substância química que impacte na saúde dos brasileiros, incluindo aí os agrotóxicos. Mas, acima deste debate, é fundamental que tenhamos uma formação coerente e eficaz das políticas públicas e instituições estatais, primordialmente no que se refere às questões sanitárias, permitindo a manutenção da competitividade do produto brasileiro no mercado internacional.
Leia também
A redação do projeto aprovada na Câmara – e que agora retornará ao Senado para nova votação – na prática alija a Anvisa do processo e leva a um “libera geral” na aprovação e controle dos agrotóxicos. E isso é inadmissível do ponto de vista da saúde, da segurança alimentar e da política pública de segurança do uso de substâncias e da balança comercial.
Por que devemos cobrar rapidez e temeridade em relação aos agrotóxicos e cobrar extrema cautela e tempo para as vacinas? Ou o oposto? Temos de ser coerentes com a política pública de vigilância sanitária e falta-nos coerência e seriedade – e organização administrativa – para o debate.
Atualmente, o processo de registro de agrotóxicos é feito por três órgãos: a Anvisa, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Ministério da Agricultura. Isto faz com que os pedidos permaneçam inalterados por até oito anos, embora a lei em vigor determine que o parecer sobre um produto deva ser liberado em 120 dias. É preciso, sim, rever o tempo. As propostas de informatização e integração do processo de análise são positivas. Mas não é isso que faz o projeto de lei.
Caso este seja aprovado, a decisão sobre permitir novos agrotóxicos seria exclusiva do Ministério da Agricultura, restando à Anvisa e ao Ibama as análises auxiliares sobre os eventuais riscos dos produtos. Isso, por si só, já é absurdo! Equivale a dar ao Ministério da Saúde total controle sobre liberação (ou não) de uma vacina, dispensando a análise técnica da Anvisa – que tem os meios e a expertise para avaliar substâncias controladas – e eliminar a análise do impacto dessas substâncias sobre nossa água, nosso solo e os biomas, em descompasso com as práticas comerciais internacionais.
Obviamente não faz sentido que a autorização para um novo princípio ativo demore de três a oito anos, impedindo que produtos mais modernos cheguem ao mercado, se a lei determina que se demore apenas quatro meses. Mas tampouco faz sentido que a lei permita um registro temporário para agrotóxicos – liberado em um prazo de até 30 dias no caso de produtos novos voltados à pesquisa e experimentos -, concedido exclusivamente pelo Ministério da Agricultura e que permanecerá ativo até que o pedido seja analisado conclusivamente.
O que estão nos propondo agora é que comamos venenos liberados em 30 dias, unilateralmente por um órgão político (e não técnico), para pestes que já nos são conhecidas.
Pesticidas são importantes, sim. Parte da agricultura familiar os utiliza. Mas são também fundamentais a qualidade da água, do solo, a proteção das espécies polinizadoras e, principalmente, a qualidade do alimento que chega à nossa mesa.
Por tais incongruências é que o projeto de lei deve ser revisto. Seu texto, como se configura hoje, é nefasto porque anda para trás e possibilita a reavaliação dos produtos com substâncias vetadas anteriormente e sua possível autorização de uso a partir de uma escala de risco. Ao contrário disso, é preciso modernizar, andar para frente e trabalhar na direção do Plano Nacional de Redução de Agrotóxicos, que está parado na câmara desde 2019. É necessário ampliar o uso de controle biológico de que se ocupa a Embrapa, mais modernos e mais sustentáveis, com menos toxicidade.
Indo mais além, também é fundamental reafirmar as diferenças regionais da produção e impedir um controle eminentemente federal, que relega apenas à União a competência para criar normas e leis sobre as atividades que envolvem os pesticidas, como a produção e o comércio, o controle e a fiscalização. Estados e municípios podem e devem ter a competência para criar regras próprias, mais apropriadas à realidade da produção e meio ambiente locais.
Diante de tal quadro, devemos trabalhar no sentido de proteger processos técnicos dos saberes políticos. Políticas públicas devem ser executadas com seriedade e com base em evidências, pois não são e não podem ser sensíveis a lobbies e nem a ideologias. Se hoje temos um Ministério da Agricultura que “libera geral”, amanhã podemos ter um que “senta em cima” de pedidos de aprovação de pesticidas necessários e de atualizações benéficas (como o controle biológico de pragas, mais seguros até para o agricultor); como ficamos diante desse arcabouço institucional talhado pela lei?
É nossa obrigação trabalhar para garantir uma lei que atue como antídoto contra um veneno mortal, mas que esteja de olho para a produtividade competitiva. E não fazer vistas grossas e permitir que esse veneno chegue aos lares dos brasileiros!
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para redacao@congressoemfoco.com.br.
Deixe um comentário