Eu sou porque nós somos. O movimento está na matriz ontológica, filosófica e epistemológica do ubuntu, defende o filósofo Mogobe Ramose, ao compartilhar suas reflexões sobre filosofia africana. Segundo ele, ubu evoca a existência e ntu é o modo de ser no processo.
O ser coletivo negro, que faz sua trajetória através dos tempos, nos diversos espaços materiais e imateriais, no Brasil constrói suas vivências, frequentemente em processos de remoção forçada, onde recria a vida, conduzido pela forte herança ancestral, de ser na natureza. Favelas, mocambos, terreiros, comunidades, bairros, distritos, quilombos, palafitas, quintais. Assim a memória cultural africana se expressa nos corpos, mentes e fazeres. Mantém-se, no encontro e nos conflitos, a partilha de seus valores com os demais brasileiros que trazem outras referências ancestrais.
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Nos amores e nas disputas, nos conflitos e nas composições por sobrevivência, no contexto de iniquidades, os negros, na base da pirâmide em desigualdade aprofundada pela voraz exploração de minérios, por toda bacia do Rio Doce, habitavam em comunidades de vários formatos. Um dia, cerca de 55 milhões de metros cúbicos de lama com rejeitos jorraram do alto do complexo minerário da Samarco, controlada pela Vale S.A. e pela anglo-australiana BHP Billiton. Nada foi poupado!
Restam cerca de cinco anos de adoecimento, empobrecimento, dores pelas perdas e desqualificação. Há, outrossim, o desespero quando na televisão informam que os atingidos estão sendo reparados e reinseridos no processo produtivo. Muitos ainda sofrem com o deslocamento compulsório que forçou a retirada do campo de muitas famílias, hoje desagregadas no meio urbano.
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O diagnóstico do povo Krenak sobre o rio Doce coincide com o da maioria dos cientistas: o rio está morto. Certamente apresenta sinais de vida, mas só sinais. As empresas negam. Dizem que o ambiente está se equilibrando e que a lama que lá está deve ficar. Avaliam que seria caro retirá-la e o processo provocaria mais impacto na bacia. A robusta engenharia brasileira e a capacidade de produzir tecnologias adaptadas às necessidades são, pelas mineradoras, assim atacadas. Afinal, nossa engenharia não serve apenas para implantar barragens de alto risco ou para levar lama para o alto dos morros, como ocorreu no pós-desastre. Isso é necroengenharia.
A pandemia causada pela covid-19 atinge drasticamente os negros ribeirinhos nos cerca de 83.400 quilômetros quadrados da bacia do Doce, sendo 86% no Estado de Minas Gerais e o restante no Espírito Santo. A maioria desenvolve atividades informais ou de caráter tradicional, como ocorre nos quilombos impactados. Falta água, saneamento e infraestrutura.
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As reparações não consideram o todo dos danos e os dados científicos que demonstram contaminações e prejuízos à saúde humana e animal pela poeira. As perdas ecossistêmicas são refutadas pelas empresas responsáveis pelo sinistro. Baskut Tunkak, ex-relator da ONU sobre substâncias e resíduos tóxicos, e seu sucessor, Marcos Orellana, foram contundentes em reuniões promovidas pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e pela Cáritas com os atingidos pelo desastre, representantes do Ministério Público e pesquisadores. Afirmam que o Brasil vive uma profunda regressão no padrão de direitos e que penaliza de forma diferenciada os distintos grupos nacionais, seguindo o histórico de racismo estrutural e de patriarcalismo. Os relatores identificaram negros e indígenas como profundamente vulnerabilizados pelos processos produzidos pelos desastres tecnológicos causados pelas mineradoras em Mariana, e pela Vale em Brumadinho (MG).
Tramita no Congresso o Projeto de Lei 2.788, de 2019 que institui a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB). É produto de um processo negociado. As referências filosóficas dos diferentes povos, certamente são compartilhadas pelos humanos com os quais fazem a jornada na vida. Assim, esperamos que o Congresso brasileiro, especificamente o Senado, incorporando a sabedoria ubuntu, até o dia 5 de novembro, num ato de compromisso com a reparação, aprove, finalmente, a PNAB na integra.
Brilhante argumentação em defesa de um plano justo para prevenção e reparação dos danos aos brasileiros atingidos por barragens. O que mais poderia querer o Legislativo para aprová-lo integralmente, dinheiro e cuecas?
Excelente discussão profa Dulce Pereira. Fundamental e urgente essa votação no senado.
Só na união e no aquilombamento será possível esperançar um futuro para os atingidos por esses crimes. Acolhimento entre si, enquanto coletivo, e persistência na punição dos criminosos. Não há mais espaço para silenciamentos.
O pior de tudo é saber que não vai acontecer nada com ninguém.
Ninguém será responsabilizado pelas tragédias.
Reclame da justiça também, que não serve para nada.