Se existe, nessas últimas seis décadas, um segmento da sociedade brasileira organizada com comprovado histórico de produção de conhecimento e incidência política, esse é o movimento negro, que despontou nesse período com vigor incontestável. Fomos capazes de expor em letras fortes que a desigualdade social brasileira tem cor e que ela é negra.
As evidências desse ativismo e da nova compreensão sobre a realidade brasileira estão por toda parte: no potente movimento de mulheres negras, com expressiva e ativa participação da juventude negra; na organização das comunidades quilombolas, que sequer eram reconhecidas até a Constituição de 1988; na presença de negros nas universidades por todo o país, alterando, definitivamente, o perfil de alunos dessas instituições; nas manifestações e denúncias contra os ataques às religiões de matriz africana, uma violação que fere de morte princípios constitucionais; na atuação contra a violência policial e a seletividade do sistema de justiça que, no mais perverso formato de controle e punição, insistem em negar cidadania e respeito à população negra, jovem e periférica.
Os focos de resistência e contestação estão expressos em argumentos amplos e propostas de solução efetivas que valorizam a organização da população negra por seus direitos sociais, políticos, econômicos, culturais e ambientais. O sentido final desses processos de mobilização e organização sempre primaram por qualificar a democracia no país, garantindo que os direitos que materializam os princípios de cidadania de um povo sejam uma realidade para todos e não apenas para uma ínfima parcela da população. E esse perfil de exclusão compromete qualquer projeto de nação.
E, sim, o Brasil não é uma democracia racial. Deveria ser, mas não é. Deveria ser porque os afro-brasileiros representam, oficialmente, 56% da população brasileira. Deveria ser porque quase 4 milhões de africanos – homens, mulheres e crianças – foram brutalmente traficados para o Brasil como escravos e, por aqui, ao longo de mais de 350 anos, foram responsáveis por fundar este país e, portanto, deveriam ter seus direitos como cidadãos e cidadãs plenamente assegurados e isso, definitivamente, não tem sido o caso.
O Brasil não é uma democracia racial porque a discriminação racial e o racismo são, ao mesmo tempo, uma prática e uma ideologia que assolam, insidiosa e brutalmente, o cotidiano das pessoas negras, suas famílias e suas comunidades. Ter denunciado a democracia racial brasileira como um mito e uma farsa foi, também, uma extraordinária obra política do movimento negro contemporâneo e de seus ativistas.
Na atualidade, devemos reconhecer, esses assuntos avançaram como debate necessário à formação da opinião pública contra o racismo e, até mesmo, à construção de uma opinião pública antirracista. E isso é algo muito positivo. Não há caminho fácil para remover concepções que, por séculos, desumanizam a existência e as experiências de vida das pessoas negras, mas, para o bem de todos, esse é um caminho que precisa ser trilhado com honestidade, escuta, generosidade, solidariedade e respeito. É preciso fazer circular conhecimentos diversos e romper silêncios impostos pela escravidão e pelos açoites.
Abrimos este espaço no Congresso em Foco para falar dessas realidades terríveis, mas, também, de resistências no plural, como expressão da liberdade de pensamento e pluralidade na produção de conhecimento. Sendo a liberdade de expressão um valor inegociável no exercício da democracia, garantir que esse valor esteja compromissado com a luta contra o racismo é um aspecto essencial a esse debate. Daí que é preciso ampliar e amplificar as vozes dedicadas à essa elaboração, que se preocupam em qualificar a nossa democracia e conferir materialidade ao ideal de liberdade de expressão.
Assim, nas próximas semanas, sempre às quintas-feiras, são essas ideias e saberes que nos propomos a compartilhar na coluna Olhares Negros. Contaremos com um grupo muito especial de colaboradoras, mulheres negras ativistas, pensadoras, pesquisadoras que têm dedicado suas vidas e reflexões à construção de uma humanidade que prima pelo respeito à vida sob Olhares Negros.
Por aqui nos encontraremos com Helena Theodoro, filósofa, professora, pesquisadora e escritora; Dulce Maria Pereira, arquiteta, ambientalista, pesquisadora e professora da Universidade Federal de Ouro Preto; Vanda Machado, mestre e doutora em educação, escritora e referência para a comunidade de terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, de nossa saudosa Mãe Stella de Oxóssi; Kelly Tiburcio, cineasta, produtora de conteúdo e criadora da série NarraPreta sobre o meio audiovisual; Roberta Eugênio, advogada, pesquisadora dedicada as temáticas de direitos humanos e violência política de gênero e raça; e, eu, Wania Sant’Anna, historiadora e pesquisadora de relações raciais e de gênero.
Essa é a composição inicial da coluna Olhares Negros, mas acolheremos também a reflexão, a experiência e o conhecimento de outras ativistas e pesquisadoras nacionais e da diáspora africana. Afinal, os olhares negros estão por toda parte.
Mulheres que pintam o país com a cor da esperança
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