Por Ricardo Silva*
A crise mundial na saúde afetou todas as áreas do ambiente humano. Em especial, a educação. Com aulas online, ensino a distância, plataformas digitais, videoconferências, tudo mudou na cabeça e na rotina de milhões de alunos no Brasil e no mundo. Mas antes que entremos no tempo presente, o passado é bem-vindo para compreendermos o que podemos desejar como caminho para uma evolução.
A Revolução Cognitiva, ocorrida setenta mil anos atrás, nos trouxe até aqui. Antes, éramos como qualquer outro animal para nos comunicar. Um bicho amedrontado o fazia tão bem quanto os hominídeos mais evoluídos, segundo o historiador israelense Yuval Noah Harari, no livro Sapiens – uma breve história da humanidade. A linguagem criada naquela época nos deu a oportunidade de produzir ficção, imaginar regras, ordenar nossos grupos e contar histórias, que foram transmitidas para nossos filhotes e, assim, de geração para geração. E um fator essencial para que tudo desse certo foi a cooperação, o trabalho colaborativo.
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No século passado, pudemos ratificar, ou para muitos aprender, que toda “cultura é um texto, formada por diversos subtextos”, como consta no livro O poético das Mídias, organizado por Míriam Cris Carlos e Antonio Hohlfeldt. Com o filósofo russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), estudioso das linguagens, vimos que a própria consciência humana é linguística e, portanto, todo embate social, toda construção social passa por um texto. Em palavras mais simples, a vida é um grande “tecido de palavras”, que vamos costurando juntos, alguns entendendo mais e outros, quase nada.
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Parto dessas informações para mostrar que hoje, julho de 2020, século 21, um percentual significativo de nossas crianças e jovens de sexto, sétimo ano do Ensino Fundamental, ou até do Ensino Médio, não conseguem compreender um texto curto, com informações à vista. Outros sabem apenas copiar o “desenho” do próprio nome. Estão apartados das decisões, dos debates. Não se trata somente de analfabetismo puro ou funcional, mas do mais triste dos mundos: o “analfabetismo existencial”.
Os dados do Pisa, maior avaliação de estudantes do mundo, divulgados no final do ano passado, só contaram o que nós já sabíamos: o Brasil é um dos países mais desiguais em educação. A China lidera nas três áreas avaliadas: Leitura, Matemática e Ciências. Os alunos brasileiros atingiram, em média, 413 pontos na classificação geral de capacidade leitora, ocupando o 57º lugar entre 79 países.
Aqui se investem perto de 6% do PIB (Produto Interno Bruto) em educação. Para o orçamento deste ano, foram reservados aproximadamente R$ 102 bilhões. Muitos consideram o percentual baixo, mas isso pode ser debatido de vários pontos de vista. Está acima da média dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), 4,9%, que reúne 37 nações, em sua maioria desenvolvidas. Só que o PIB desses países é maior que o brasileiro, e a rede de educação da maioria é menor que a nacional.
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Isso influencia no que se investe por aluno. Segundo pesquisas da Education at a Glance 2017, com números de 2014, a média dos países membros da OCDE era de US$ 10.759 anuais por estudante, levando em conta todos os níveis de educação, do básico ao universitário. O Brasil, entretanto, investiu apenas metade do valor: US$ 5.610 anuais ou US$ 467 por mês (esse valor inclui salário e formação de professores, material e infraestrutura, manutenção das escolas, medidas para diminuir o número de alunos por sala). Voltando à questão do PIB, a Alemanha, outro exemplo, investe 4,4%, o que corresponde a US$ 10.339 por aluno ao ano.
Com a pandemia, fomos obrigados a entrar no mundo online, na educação a distância. No Brasil são cerca de cinco milhões de crianças e adolescentes sem internet em casa, o que corresponde a 17% do total entre quem tem de 9 e 17 anos, segundo dados da Unicef. No Estado de São Paulo, apenas 1,6 milhão dos 3,6 milhões de estudantes da rede estadual acessou a plataforma de conteúdo online, segundo reportagem de Debora Pill para o portal UOL. Ela ainda informa que, no Paraná, professores estimam que só 30% dos estudantes estejam assistindo às videoaulas. São desigualdades que temos que corrigir e que nos oferece nova oportunidade de pensar toda a estrutura educacional do país, como o grande abismo entre as redes pública e particular.
O mundo também se debruça sobre o tema. Afinal, o planeta se transforma cada vez mais rápido em uma grande (ou pequena) aldeia. O que acontece do outro lado nos influencia aqui, como o próprio coronavírus ratificou. O que aprendemos na infância, nos primeiros anos de escola, vai influenciar no modo como enxergamos o mundo e despertará em nós, ou não, o desejo de transformá-lo.
Daí a importância de conectar os saberes às necessidades do tempo de agora e para o futuro. É preciso sincronizar o que acontece lá fora, na vida das crianças e jovens, com os diálogos, com as disciplinas que são obrigatórias para dentro dos muros da escola. Modelos de aprendizagem pelo mundo e em escolas particulares aqui do Brasil, como informam portais especializados em educação, mostram que avaliações são importantes, mas não mais que preparar os alunos para a cidadania, para atuarem na sociedade. É preciso trabalhar habilidades e competências socioemocionais, tão exigidas no dia a dia. Algumas instituições já desenvolvem gestão compartilhada, com alunos participando das escolhas, das decisões, dos regramentos, com voz ativa nos processos pedagógicos, fazendo com que se envolvam mais com a escola e ainda aproximem a comunidade escolar. É evidente a necessidade de entendimento dos estudantes sobre o mundo, sobre as novas tecnologias. Mas sem jamais deixar de investir na humanização e no fortalecimento da consciência.
Muitos estudiosos da área dizem que temos uma escola do século 19, um professor do século 20 e um aluno do século 21. Simbolicamente, podemos citar o ordenamento de alunos ainda enfileirados, um olhando para a nuca do outro, quando poderiam estar dispostos de outra forma, como num círculo, recebendo o contato de todos, para despertar o gosto por compartilhar suas descobertas e valorizar o coletivo. Como, então, obter um resultado positivo a partir desses desencontros?
Para o filósofo francês Edgar Morin, é preciso revolucionar a arte de ensinar. Não bastam livros técnicos, temos que nos dedicar a outras áreas que compõem o ser humano. As disciplinas não devem ser segmentadas, divididas, apartadas, mas aproximadas, construídas em conjunto, vividas em união. Vida e pensamento, diz ele, estão interligados, entretecidos, são complexos. A Educação não pode se desvincular das infinitas variantes da vida. Por isso se torna necessário fazer uma reforma do pensamento, do modelo apenas racional de Educação. O afetivo e o intelectual são indissociáveis.
Outro aspecto que merece destaque é a desvalorização dos professores brasileiros. Segundo Claudia Costin, professora universitária da FGV-RJ e diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais (CEIPE-FGV), o salário do educador é um dos mais baixos entre todos os países que participam do Pisa, o que é impedimento para atrair profissionais diferenciados para a escola pública. Embora capacidade de conhecimento não signifique eficiência na transformação de informações em aprendizado. Os alunos precisam muito mais de quem se conecte com a realidade deles do que quem acumule saberes e não consiga dialogar, que desconheça a vida de seus educandos. Salas de aula lotadas, com quarenta alunos ou mais, também tornam praticamente impossível lecionar com qualidade. A Finlândia, um dos países com maior destaque em avaliações internacionais, seleciona seus professores entre as pessoas mais bem preparadas da sociedade. “O ideal de ser humano perfeito é projetado para o professor, para a professora: brilho nos olhos, vontade de mudar o mundo, vontade de criar cidadãos. Na Finlândia, são os 10% dos melhores candidatos que se tornam professores”, explica Jarkko Wickström, diretor de operações da Universidade da Finlândia.
A leitura sempre será um forte pilar da educação em qualquer época da humanidade. Para a editora de literatura infantojuvenil e fundadora do portal Para Educar, Christiane Angelotti, os livros de literatura fortalecem a inclusão social, é um despertar. “Por isso é também uma forma de dominação social a manutenção dos altos índices de analfabetismo funcional e as tímidas ações em prol da formação de leitores, que estão sempre atreladas uma a outra. Ler é um ato político”, disse ao site Mirada.
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Entende-se, portanto, que ensinar nossas crianças e jovens a ler e a interpretar a vida, e assim transformá-la, é mais importante do que apenas prepará-los para competições baseadas no decorar de dados. A cooperação, a forma de atuar em conjunto, como há setenta mil anos, pode ser um grande indicativo. E não a disputa pelo que se convencionou chamar de “sucesso”. A realidade é mais que status e modelos. Se surgisse entre nós um ser de outro planeta, por exemplo, seria difícil tentar explicar para ele por que aqui, onde se produz um número incalculável de alimentos, haja quem ainda passe fome. Onde entra o “sucesso” aí?
E de quem é a responsabilidade para essas mudanças? De toda a sociedade, passando pelos governos federal, estaduais e municipais. Por todos os parlamentos do país, por cada família. Esse processo de construção de um novo pensamento nacional e mundial é necessário e urgente. É coletivo. Se a pandemia reforça em nós esse alerta, é preciso também trabalharmos por uma “vacina” eficiente que impeça o aprofundamento de nossas crianças e jovens no analfabetismo existencial. Só assim caminharemos pautados em virtudes e preceitos de humanidade, como empatia, solidariedade, compreensão, dignidade, diálogo e, por fim, bem-aventurança.
*Deputado federal pelo PSB-SP, formado em Direito e Filosofia, com pós-graduação em Sociologia.
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