*Geraldo Seixas
As crises econômica, fiscal, sanitária e política que atingem o país parecem não ter fim. Nesse cenário de completa anormalidade, setores que representam a parcela mais privilegiada da sociedade, de forma organizada e amplamente representada no Congresso Nacional, na mídia convencional e em institutos de pesquisa e de formação de opinião, se aproveitam para “vender” propostas e projetos que visam a suposta e tão propalada modernização do país.
Mas a quem interessa e serve um projeto de anomia do estado brasileiro que sem estrutura, com número ainda menor de servidores, perde mais ainda sua capacidade de regular, fiscalizar e de exercer o controle das mais diversas atividades em favor da sociedade?
É preciso analisar com extremo cuidado uma proposta de reforma administrativa que nasce de premissas equivocadas e que setores privilegiados pretendem aprová-la exatamente no momento em que a sociedade brasileira vivencia os efeitos da mais grave crise de sua história. Na atual conjuntura não há como promover o devido debate, dada a impossibilidade até mesmo de participação efetiva da sociedade nessa discussão que é de interesse de todos.
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A pandemia de covid-19 evidenciou a necessidade do Estado na vida de cada cidadão. Desde o início da mais grave crise sanitária da história contemporânea da humanidade foi o setor público, nas suas mais diversas formas de atuação em todo o mundo, que saiu em socorro da sociedade. Inclusive, o debate que se trava hoje no Brasil está relacionado ao quanto mais poderia e deveria ter sido feito pelo setor público, seja por meio da ampliação dos investimentos em saúde, assistência social, em pesquisa e até mesmo na implementação de políticas públicas perenes que possam assegurar maior proteção às parcelas mais expostas da sociedade.
Uma discussão ampla, complexa e que está diretamente associada ao debate de reformas, mas não apenas da administrativa. Mais uma vez, setores da sociedade se aproveitam do caos para tentar empurrar mais uma de suas propostas de reforma, repetindo a retórica de que sem sua aprovação a economia não voltará aos rumos. É o mesmo discurso e são praticamente os mesmos atores que venderam a panaceia da terceirização e das reformas trabalhista e da previdência que salvariam empregos, restabeleceriam a renda e tirariam o país da crise. No entanto, o que se vê diariamente é o agravamento das condições fiscais, econômicas e sociais do país.
Flexibilizar o regime estatutário do setor público, reduzir subsídios e vencimentos dos servidores, dificultar ou impedir o direito de greve, de manifestação e de representação dos trabalhadores do setor público não vai contribuir em nada com o ajuste fiscal e a retomada do crescimento. Essas falsas premissas servem apenas para desestruturar o serviço público e vão agravar a capacidade do Estado de gerar receitas, por meio da arrecadação de impostos e contribuições, combater a concorrência desleal, o contrabando e descaminho e a sonegação, assim como podem criar gargalos e ineficiências que terão efeitos negativos para o setor privado e para toda a economia.
Também não se pode permitir a utilização de forma grosseira de estatísticas para justificar a necessidade de reformas. É preciso compreender e combater as falsas comparações e assimetrias, ainda mais quando propositalmente não levam em consideração os efeitos nefastos para a vida da população gerados pela Emenda Constitucional 95/2016, que impôs o teto dos gastos, congelando investimentos públicos por 20 anos.
Nos últimos cinco anos, estamos vivendo um processo seguido de retirada de direitos, de redução do poder de compra dos trabalhadores e de achatamento das condições econômicas da grande maioria da população. Como efeito direto dessa política, o Brasil acumula seguidos resultados de baixo crescimento.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 65% da composição Produto Interno Bruto (PIB) é resultado do consumo das famílias. Em 2019, o PIB foi de R$ 7,3 trilhões e desse total R$ 4,7 trilhões estão diretamente ligados a manutenção de pensões, aposentadorias, benefícios, salários e da remuneração de trabalhadores formais, informais, servidores públicos e profissionais liberais. Assim, ao tentar avançar nesse projeto de redução de salários dos servidores, o governo atenta, mais uma vez, contra o crescimento da economia e seguramente, se aprovada, reduzirá ainda mais a arrecadação de impostos, afetando a receita e agravando o quadro de crise fiscal.
Da nossa parte, como analistas tributários da Receita Federal do Brasil, temos uma história em defesa da modernização do Estado e, principalmente, da Administração Tributária e Aduaneira. Sabemos como a falta de investimento na Administração Tributária favorece sonegadores e inadimplentes contumazes, os principais motivos da atual crise fiscal que enfrentamos.
Essa luta faz parte de nossa história, pois compreendemos e consideramos fundamental que se promova a modernização da administração pública, de seus cargos e carreiras. Mas esse processo deve levar em consideração práticas que são amplamente utilizadas em economias modernas e que preveem mecanismos contínuos de avaliação institucionais e individuais no serviço público, estabelecimento de condições para formação permanente dos quadros, definição clara de atribuições e investimentos constantes em tecnologia. Esses são elementos centrais em qualquer política de aprimoramento da máquina pública, o que inclui os servidores público, e que não fazem parte dos debates e das propostas que foram divulgadas até o momento, ainda que parcialmente.
Também compreendemos que o momento exige mudanças, mas estas devem começar por um amplo debate sobre os meios de financiamento do Estado brasileiro e devem levar em consideração a capacidade contributiva de cada cidadão e as reais necessidades do povo brasileiro. É nesse sentido que defendemos como prioridade a retomada do debate da reforma tributária, que tem sim a capacidade de promover a modernização do Estado brasileiro, de implementar um sistema tributário progressivo, simplificado e justo, e que tenha como premissa a desoneração do custo do trabalho e da produção, ampliando a arrecadação de forma proporcional e a capacidade de contribuição de cada cidadão.
A retomada do crescimento e a construção de um país mais justo se inicia com o debate dos projetos e das reformas que se pretendem implementar. Uma proposta que se inicia com premissas equivocadas e omite os interesses envolvidos na discussão não pode ter outro resultado a não ser a repetição de erros de um passado recente, que só serviram para agravar e ampliar as crises que periodicamente atingem o Brasil e podem inviabilizar a nação.
* Geraldo Seixas é presidente do Sindicato Nacional dos Analistas Tributários da Receita Federal do Brasil (Sindireceita)
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