A OAB – quando eu tive a honra de compartilhar a sua presidência – lutou para que o país soubesse, em detalhes, o que lhe aconteceu durante a ditadura civil-militar de 1964/1985. Nutria-nos, à época, a certeza de que o futuro dos crimes contra a humanidade e a consolidação da democracia guardariam relação direta com o futuro que se dá aos criminosos que os praticaram. O violador do crime contra a humanidade e os que atentam contra a democracia precisariam saber que o seu ato jamais seria anistiado ou perdoado pelo lapso temporal. Aliás, devíamos isso à geração que lutou para constitucionalizar o Brasil. Devíamos à Lyda Monteiro, secretária da presidência da OAB, assassinada em carta-bomba destinada ao presidente Seabra Fagundes.
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Com essa finalidade histórica, a OAB ajuizou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153, para que se reconhecesse que os crimes contra a humanidade não poderiam ser objeto de anistia. Ajuizou a ADPF 158 com o objetivo de revogar o regime diferenciado que ainda pune os militares perseguidos por não concordarem com a ditadura civil-militar. Propôs ação para que os arquivos da ditadura não permanecessem secretos (ADI 3987), bem assim como interpôs medida para que o Superior Tribunal Militar (STM) apurasse denúncias de que arquivos daquela época estavam sendo queimados e destruídos. Quando da Conferência Nacional dos Advogados — na cidade de Natal, no ano de 2008, não coincidentemente denominada “Estado Democrático de Direito x Estado Policial” –, recebeu a Comissão Nacional da Anistia, que, em emocionante sessão pública, anistiou o presidente João Goulart, ocasião em que o Brasil pediu oficialmente desculpas pelo golpe civil-militar de 1964.
Mas, infelizmente para o futuro da democracia, não foi este o pensamento do Poder Judiciário, corroborado pelo Executivo e Legislativo. Todos eles, sem exceção, recusaram-se a enfrentar o tenebroso tempo em que o medo era servido na mesa da cidadania brasileira O STF julgou improcedente a ADPF 153, no dia 29 de abril de 2010, mantendo anistiados todos aqueles que cometeram crimes contra a humanidade durante a ditadura civil-militar de 1964, vencidos apenas os ministros Ricardo Lewandowski e Ayres Britto. Resta-nos, neste tema, que o próprio STF reveja esse posicionamento em razão dos embargos de declaração interpostos na época e ainda pendentes de julgamento.
Negou-se, rápida e liminarmente, o seguimento da ADPF 158, o que implicou na perpetuação da perseguição dos militares que resistiram ao golpe de 1964. A ADI 3987, que pretendia acabar com o sigilo militar dos documentos e processos produzidos durante o período de chumbo, nunca foi a julgamento, tendo sido extinta sem julgamento de mérito em 11 de novembro de 2020, por perda do objeto, em razão de lei posterior que regulamentava a questão do sigilo documental no Brasil.
Em todas as ações, o Poder Executivo e o Poder Legislativo atuaram em sentido contrário à posição da OAB. Não se pode esquecer, ainda, que a União protelou por vários anos o Processo n. 0000475-06.1982.4.01.3400, que ainda tramita perante a 1ª Vara da Justiça Federal de Brasília, tendo como objeto o cumprimento das decisões internacionais e da própria Constituição Federal. Foi nesse processo que o tenente-coronel Sebastião Curió confessou ter matado e desaparecido grande parte dos integrantes da resistência armada do Araguaia.
Também de forma inédita e sem qualquer precedente jurídico, no dia 1º de abril de 2013 o então ministro da Justiça se recusou a homologar a decisão da Comissão de Anistia, que considera o benefício constitucional aos trabalhadores do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro (Requerimento de Anistia 2005.01.51405). Igualmente, de forma inédita, foi a decisão do STF no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 817.338, quando afastou a decadência do pedido de revisão de anistia reconhecido pelo STJ, revogando-se, assim, as anistias políticas concedidas aos cabos da Aeronáutica.
PublicidadeO Brasil precisa livrar-se do hábito de varrer para debaixo do tapete da História as suas abjeções. Ainda precisamos conhecer em minúcias o que se passou ao tempo da ditadura – nos porões, nas guerrilhas, nos bastidores, nos tribunais. E não por razões de revanchismo, até porque a maior parte dos protagonistas nem sequer mais está viva. Mas, sobretudo, para entendermos o modo pelo qual permitimos que tudo aquilo se instalasse entre nós. É necessário tirarmos o tema da Justiça de Transição da mera discussão conceitual e dar-lhe conteúdo jurídico, fazendo com que a nação o discuta objetivamente e lhe dê consequência prática.
Sabemos que um povo que não conhece o seu passado está condenado a repeti-lo. Assumiu-se, portanto, o risco de se ver repetido o passado. E ao assumir os riscos, estavam criadas as condições para o ressurgimento dos discursos anteriores ao golpe de 1964. Dentre eles, o ficcional combate ao comunismo e a falsa propaganda da defesa da família, da tradição e da propriedade. E a equivocada escolha brasileira logo cobrou a sua fatura. Tempos depois se pretendeu reestabelecer a mentalidade autoritária revogada pela Carta Constitucional de 1988, cedendo-se ao canto de sereia do Estado policial, dos mitos autoritários, do fascismo e da falaciosa propaganda das armas como fator de segurança.
A eleição do militarista Jair Bolsonaro é, sem dúvida, o maior exemplo do erro cometido ao não enfrentar a questão militar e as violações cometidas durante a nefasta ditadura. Elegeu-se o fascismo militarista de Jair Bolsonaro, que fazia apologia à tortura, admirava o torturador Brilhante Ustra, defendia uma intervenção militar e agora é investigado pela tentativa do golpe praticado no fatídico 8 de janeiro de 2023.
Esses últimos acontecimentos mostram que, urgentemente, precisamos compreender e retomar o tema da proteção à sociedade contra qualquer tentativa de golpe de Estado, especialmente a punição, sem anistia, dos que comentem e fazem apologia a crimes contra a humanidade. No mesmo sentido aos que tentam golpear a Constituição Federal e a sociedade brasileira. É a democracia quem assim exige. A sobrevivência da humanidade também.
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