Chico Buarque, em seu genial disco Meus Caros Amigos, no auge da nefasta ditadura civil-militar de 1976, ousou mandar notícias sobre o Brasil que matava pessoas, torturava esperança, desaparecia corpos, exilava existências, censurava resistências e, na pirueta do calabouço, escondia a mutreta que corrompia sem pirraça. Fustigou ainda, sem choros ou perfumes inebriantes, a hipocrisia da sociedade machista que, em nome da tradição, da família e da propriedade, aprisionava as atenienses nascidas no Brasil, que viviam pros seus maridos, nas mais duras penas.
Naquela página infeliz da nossa História, o estruturado patrimonialismo patriarcal seguia passando, como passagem desbotada na memória.
Ele fincara e fincou as suas garras na nossa Pindorama, desde o distante 22 de abril de 1500, sob o comando do português Pedro Álvares Cabral e dos homens a bordo das treze caravelas europeias. Os homens que logo escravizariam os povos originários e os nascidos da Mãe África, eram os mesmos que já oprimiam as mulheres, igualmente consideradas coisas, despossuídas de direitos, objetos de prazer ou reprodutoras sem prazer. Os senhores de escravizados, os donos do pátrio poder e o patriarcado estavam protegidos pelas leis. Eram a própria Lei. Divina. Atemporal. Incontestável.
Dentre as várias leis machistas reinavam, absolutos, os deveres maritais da mulher casada, ensinados nos festejados cursos de prendas do lar. As mulheres somente poderiam viajar, conquistar o libertário passaporte ou trabalhar se autorizadas pelos respectivos maridos. Estes poderiam, inclusive, ingressar com ação trabalhista para rescindir os contratos de trabalho de suas esposas, caso o labor atrapalhasse os deveres do lar ou o “Reinado do Fogão”. Mirem-se no exemplo de Myrthes Gomes de Campos – a primeira advogada inscrita nos quadros formais da advocacia – que teve a sua inscrição negada, exatamente por ser mulher casada. Ou Maria Rita Soares de Andrade – a primeira Conselheira Federal da OAB e juíza federal – perseguida e impedida de ingresso nos espaços de ensino e dos poderes destinados aos homens.
É bem verdade que o Estatuto da Mulher Casada (1962), a Lei do Divórcio (1977), a Constituição Federal (1988) e a Lei 7.855/89, dentre outras, pretenderam revogar o machismo estrutural que condicionava o trabalho da mulher à autorização marital. Entretanto, assim como o que ocorrera com a Lei Áurea de 1888, as leis não foram suficientes para mudar mentalidades machistas, racistas e preconceituosas fundadas no secular patriarcado brasileiro. Os homens ainda são os titulares e senhores absolutos do mercado laboral. Além dos melhores e mais bem remunerados cargos, seguem reservando para as mulheres as tarefas de cuidadoras do lar, mesmo que em dupla jornada doméstica. Tão grave quanto: as mulheres só são dignas de empregos, se por eles abonadas. Elas não têm gosto ou vontade. Nem defeito nem qualidade. Têm medo apenas.
Mirem-se no exemplo de Carol Proner, uma das mulheres mais inteligentes, corajosa e competente que já conheci. Fundadora e parceira na resistente Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), foi voz ativa na defesa da Democracia, quando vozes machas se encolheram no cômodo lar. Destemida, também gritou forte no vanguardista Grupo Prerrogativas, quando a opinião publicada atacava o Direito Humano à Defesa. Publicou incontáveis livros e artigos inscritos nos anais da História. Fez da Tribuna Internacional um espaço de defesa da Democracia violentada em golpes parlamentares e prisões injustas. O que ainda faz como influente articulista dos sites e jornais mais lidos no Brasil.
Ironicamente, a hipocrisia da sociedade machista denunciada por Chico Buarque – quase cinco décadas atrás – voltou os seus holofotes para Carol Proner. Sempre que a professora da UERJ, doutora em Direito pela espanhola Universidad Pablo de Olavide, mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, diretora-executiva do espanhol Instituto Joaquín Herrera Flores, coordenadora-executiva da Escola de Estudos Latino-Americanos e Globais (ELAG), do Consejo Latinoamericano de Justicia y Democracia (CLAJUD) no Brasil e integrante do Grupo de Puebla, é convidada para exercer as missões que a vida e o talento lhe impõe – por ela ser o que efetivamente é – o título Esposa de Chico Buarque logo surge em destaque.
Na maldade das repetidas e sensacionalistas manchetes, Carol Proner não tem mais história. Ela não passaria de mais uma das mulheres que vivem pros seus maridos, orgulhos e raças de Atenas. E assim acontece todos os dias. Com Carol e com as incontáveis outras mulheres que ousam trabalhar no Brasil do machismo estrutural. Todas elas são melenas, cadenas, obscenas, helenas, lindas sirenas, morenas. E, como se lê, a feminina imprensa segue passando, exibindo-se em orgulhoso útero machista. Será que o estandarte do sanatório geral vai passar?
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