Política é a solução pacífica de conflitos. Conflitos perpassam as comunidades humanas e mais complicados são quanto mais complexas as sociedades. Antagonismos surgem na disputa por recursos escassos, na imposição de regras de comportamento e valores, ou pela simples busca pelo poder.
A democracia, por sua vez, avança um passo e promete que a política feita de acordo com seus termos não apenas solucione pacificamente os conflitos quanto permite que as partes interessadas manifestem suas posições. Mandar sempre foi mais confortável que obedecer, e o que a democracia trouxe foi o lenitivo da legitimidade aos que perdem as disputas e submetem-se, pois tanto sabem que sua posição foi ouvida – e poderá vencer em próxima ocasião –, quanto sua vida mantém-se preservada e apartada da rusga política – o quê, se voltarmos no tempo, sabemos que nem sempre aconteceu.
O presidencialismo que vivemos no Brasil consiste em um arranjo institucional em que há tensão permanente entre os poderes. Mais, há um necessário antagonismo entre eles para que a tirania seja mantida à distância. Em termos mais conhecidos, os freios e contrapesos são forças que um poder impõe diante de outro. Ainda, na pulverização de atores mais e menos poderosos dentro do Legislativo, Executivo e Judiciário, diversas coalizões formam-se a todo momento para aprovar algo, ou derrotá-lo, modificá-lo etc. O seio dessas coalizões processa conflitos ininterruptamente.
Então, hoje estamos vivendo conflitos demais na política brasileira?
Um estudo empírico interessantíssimo foi produzido por Saiegh (Political Prowes ou Lady Luck? Evaluating Chief Executives). Nele o autor coteja forças sociais – aquelas que se forjam, organizam-se e agem no seio da sociedade – e ações institucionais – processos decisórios determinados por regras dentro do Legislativo. Em outras palavras, mede como se dão as conexões entre forças sociais e forças políticas no Legislativo. O autor mostra que os conflitos na sociedade ocorrem mais frequentemente em duas situações extremas: quando o Poder Executivo aprova a maioria esmagadora de seus projetos no Legislativo ou quando não aprova praticamente nenhum. Traduzido: quando uma força esmaga a outra no Legislativo ou quando se estabelece o impasse. Ao contrário, os conflitos sociais ocorrem em menor número quando o Executivo tem um sucesso razoável na aprovação de suas pautas. Também traduzido: o governo tenta muitas coisas, tem êxito em parte, em outras negocia modificações e em algumas é vencido. Em suma: quando o Legislativo é lugar de conflito regular, razoável, as forças sociais estão no máximo da “paz social”.
Hoje a sociedade brasileira apresenta forte polarização, entendida como posicionamentos bastante diferentes e assumidos com forte intensidade em muitas questões importantes: educação de filhos, uso de drogas, política de gênero, uso de armas, combate à criminalidade, papel da religião na política e outros. Há uma força conflitiva latente na sociedade.
Voltando assim ao argumento de Saiegh, podemos dizer então que o relativo sucesso do Poder Executivo dentro do Legislativo, medido pelo número de projetos aprovados e vetos produzidos, acatados e derrubados (este Congresso em Foco já trouxe importante reportagem sobre isso), mostra que o Legislativo tem processado conflitos ao menos razoavelmente, tem funcionado como uma válvula de escape para os conflitos sociais. Não nos parece que estejamos nos extremos apontados por Saiegh: nem o governo vence tudo, nem há impasse geral.
Dessa forma, ao contrário do que se vê habitualmente na imprensa, o governo não está nas cordas quanto enfrenta um revés no Legislativo. Hoje o número de seus insucessos é razoável, parece aceitável tanto ao Executivo quanto aos seus opositores no Legislativo. Em verdade, não é saudável que um governo de centro-esquerda consiga impor integralmente sua pauta a um Legislativo eminentemente de direita como temos hoje. Os conflitos que vemos na imprensa não são o bicho mais feio que ronda o Brasil. Ao contrário, são da natureza comum da política.
O que anda escondido, e precisa ser dito às claras, é que parte da pauta latente ao conflito tem por essência uma negação à Constituição de 1988, principalmente no que respeita às liberdades individuais, ao estado laico, à proteção do meio ambiente, à relação do Estado com a sociedade e suas formas de solidariedade social (previdência, trabalho, justiça). As derrotas do governo, como regra, não têm consistido em regressão nessas agendas, mas sim são freios a avanços ou derrotas em questões já conflituosas como o marco temporal das terras indígenas. Com o jogo de forças hoje no Executivo e no Legislativo a desmontagem da Constituição de 1988 mantém-se em germe, muito pouco provável de ocorrer. O que pode mudar o cenário são as próximas eleições. Mas isso deixamos para outra conversa.
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Muito importante pena que a nossa sociedade não enxerga