Maha Mamo *
A apatridia, a condição jurídica de não ter uma nacionalidade reconhecida por nenhum Estado, constitui uma realidade aflitiva que impacta milhões de indivíduos em todo o globo. Essa situação priva os indivíduos de sua identidade, pertencimento e dignidade. Imagine viver sem poder estudar, trabalhar ou ter acesso a serviços de saúde? Imagine não ter um país para chamar de seu? Essa é a dura realidade dos apátridas.
De todas as formas de exclusão, a apatridia se destaca como a mais cruel, pois nega a própria essência da existência humana. A falta de documentação impede o apátrida de existir juridicamente, se tornando um ser invisível.
Erradicar essa injustiça é, antes de um dever político, legal ou religioso, uma obrigação humanitária. É um imperativo moral que nos impõe a defender o direito à identidade e ao pertencimento de todos os seres humanos.
A nacionalidade é o elo jurídico entre o indivíduo e o Estado, gerando direitos e deveres recíprocos. Sua ausência gera graves consequências em diversos campos do saber, desde o psicológico até o cultural.
Leia também
A inexistência de um regramento internacional sobre nacionalidade permite que cada Estado defina seus próprios critérios de aquisição, criando situações complexas e gerando apatridia.
Estima-se pelo Alto Comissariado das Nações Unidas dos Refugiados e Apátridas (Acnur) que mais de 4,4 milhões de pessoas sejam apátridas, um número equivalente à população da Nova Zelândia. As causas dessa condição são complexas e variadas, incluindo conflitos armados, apatridia de origem, discriminação de gênero e leis de nacionalidade restritivas.
A falta de acesso a direitos básicos como educação, saúde, trabalho e liberdade de movimento torna os apátridas extremamente vulneráveis à exploração, abuso e violência. A ausência de documentação os priva de oportunidades e os coloca em risco de marginalização e pobreza.
Minha história, escrita no livro Maha Mamo – a luta de uma apátrida pelo direto de existir, é um exemplo vívido da crueldade da apatridia e refúgio.
Nascida em Beirute, Líbano, de pais sírios, fui privada da nacionalidade libanesa por não ter o “sangue” libanês e da nacionalidade síria por causa da lei que proíbe casamentos inter-religiosos entre muçulmanos e cristãos. Durante 26 anos, vivi na sombra, sem acesso a direitos básicos.
Minha luta pela dignidade começou quando decidi que não aceitaria mais viver à margem da sociedade. Enfrentei obstáculos inimagináveis. A cada passo, encontrava barreiras impostas pela falta de documentação. Lutar por meus direitos era como lutar contra um fantasma, pois legalmente eu não existia. Mas perseverei. Em 2014, cheguei ao Brasil como refugiada. Finalmente, um país me acolheu e me deu a oportunidade de recomeçar. Em 2018, após uma longa batalha, finalmente contribuí nas mudanças das leis brasileiras e obtive a cidadania brasileira. Foi um momento de imensa alegria e conquista, foi como receber um novo sopro de vida. Finalmente, eu era alguém, eu tinha um país para chamar de meu. Minha história demonstra que, mesmo diante de grandes desafios, é possível superar obstáculos e alcançar seus objetivos, me tornei um exemplo vivo de que a mudança é possível.
A Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017) reconhece a apatridia e estabelece medidas para a proteção dos apátridas no Brasil, incluindo processo de regularização migratória, acesso a direitos básicos e possibilidade de naturalização. A Portaria Interministerial nº 5/2018 complementa a lei, estabelecendo procedimentos específicos para o reconhecimento e tratamento da apatridia no país.
Minha história não é apenas minha. É a história de milhões de pessoas apátridas em todo o mundo. Desde que obtive a cidadania brasileira, me dedico a defender os direitos dos apátridas e a promover a erradicação dessa injustiça no mundo inteiro, tendo o Brasil como um exemplo de uma lei perfeita que poderia ser aplicada nos outros países.
Apesar dos avanços, ainda há muitos desafios a serem superados. A falta de conscientização sobre a apatridia, as barreiras ao acesso à informação e a necessidade de uma implementação eficaz da legislação são alguns dos obstáculos que precisam ser enfrentados. Meu compromisso vai além da luta contra a apatridia. Acredito que todos, independentemente de sua origem ou situação legal, tem o potencial de contribuir para a sociedade e alcançar seus sonhos.
Todos nós temos algo a oferecer ao mundo.
Hoje, compartilho minha história em palestras motivacionais para inspirar as pessoas a acreditarem em seus sonhos, a superarem obstáculos e a nunca desistirem de seus objetivos. Compartilho também minha experiência como imigrante e como brasileira naturalizada, promovendo o orgulho de ser brasileiro e o amor a nossa pátria. O Brasil é um país com um potencial enorme, e todos nós podemos contribuir para o seu desenvolvimento.
* Maha Mamo é ativista dos direitos humanos, facilitadora da ONU e palestrante global. É cidadã brasileira desde 2018.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para redacao@congressoemfoco.com.br.
Deixe um comentário