Juliana Romão *
A Câmara Federal do Chile modificou sua nomenclatura para incluir as deputadas, também pela linguagem, no espaço político. Com a renomeação para Cámara de Diputadas y Diputados, a Casa efetivou uma transformação histórica, que pode desencadear um efeito de contágio positivo e empurrar a América Latina adiante nos debates sobre paridade política e inclusão de mulheres plurais na esfera pública. As chilenas ocupam 35,5% das cadeiras parlamentares.
Democratizar a linguagem com medidas concretas, como neste caso, reforça e impulsiona o efeito das legislações sobre cotas de gênero e raça na política, que determinam percentuais mínimos de visibilidade e financiamento para que mais mulheres acessem a política e disputem a representação em condições menos desiguais.
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O reconhecimento nominal desorganiza padrões mentais e altera a percepção social quanto ao nexo entre gênero, política e poder. Faz parecer que grandes holofotes foram direcionados a elas, “repentinamente” vistas no espaço onde sempre estiveram.
O projeto de cambio chileno nasceu na Comissão de Igualdade de Gênero da Câmara em 2019 e após muitos debates resultou na decisão pela mudança ampla, em duas etapas, aprovada pelo plenário em 2021. A primeira já foi efetivada, a nova logomarca, registro nas redes sociais e transição nos regimentos internos. A segunda fase, em curso, exige uma reforma constitucional para alterar o artigo 46 da Constituição, que define a composição do Congresso.
Rebatizado, o parlamento chileno alarga a compreensão da linguagem como materialização das relações de poder, põe à luz do sol o tom androcêntrico e elitizado do topo da hierarquia política, que transborda em processos de exclusão e apagamento das mulheres – especialmente as negras, indígenas, trans – suas agendas e experiências.
PublicidadeA jornada delas é atravessada por desigualdades estruturais e sobrecargas que reduzem a quase zero a disponibilidade de tempo, de recursos e de estímulo. Os estereótipos, o racismo e as situações de violência se atualizam continuamente e ambientam a invisibilidade linguística, que silenciosamente opera um sofisticado processo de apagamento.
Como instrumento de legitimação de padrões e práticas sociais, as narrativas dominantes acompanham a assimetria de gênero/raça/diversidade nos espaços de decisão, impondo o masculino e eurocêntrico como norma na palavra, no conceito e no imaginário.
É o que acontece com a designação masculina do nome próprio do parlamento nacional, como no Brasil – Câmara dos Deputados – e na maioria dos países no mundo. A identidade das deputadas é capturada e incorporada ao todo, sem menção. Como numa cena de filme que enquadra um rosto e desfoca/ os demais, as palavras fixam o que deve ser notado e orientam a nossa compreensão sobre o mundo.
A mudança no Chile é parte de um movimento político complexo, de densa articulação democrática. Desafia especificamente os deputados, os partidos de maneira geral e a imprensa corporativa a superar as resistências para adaptarem-se (democratizarem-se), num aprendizado que toca toda a sociedade.
A renomeação deságua numa renovação em cascata, desde a identificação das parlamentares, via flexão de gênero e outros recursos linguísticos em placas de identificação e sinalização, até as comunicações internas e externas, os regimentos e normativos.
América Latina à frente
O México atingiu a paridade de gênero na Casa Baixa em 2014 e desde 2019 reformou a constituição para aplicar a regra paritária também no Executivo. O nome da casa ainda é masculino, mas, diferentemente do Brasil, a designação deputadas é feita em equivalência, sempre ao lado (antes) dos deputados no site institucional, nas redes sociais e no regimento interno.
As colombianas sentam em 29% das cadeiras da Câmara, que tem designação comum aos dois gêneros, a Cámara de Representantes, embora as referências mais específicas tragam habitualmente o artigo masculino: “los representantes”. Avanços virão impulsionados pela eleição da primeira vice-presidenta negra da história do país, Francia Márquez, que não por acaso, se apresenta, e assim é chamada, pelo cargo flexionado no feminino.
No Peru, as parlamentares representam 40% dos assentos e o estágio da referência é semelhante. A designação é inclusiva, Congressistas da República, mas o uso pende ao masculino: “los congressistas”.
Brasil 2023
São muitas lições para o Brasil, tanto na implementação das cotas e normativos orientados à paridade quanto no debate sobre linguagem. As deputadas federais ocupam apenas 18% das cadeiras na Câmara e todo ano ímpar enfrentam a mobilização do Congresso para reformas eleitorais que tentam restringir os pequenos avanços na legislação de cotas, com demandas por anistia por descumprimento das regras de financiamento e presença, entre muitas outras propostas escandalosas.
Em 2021, as deputadas federais Erika Kokay (PT-DF) e Gleisi Hoffmann (PT-PR) apresentaram um requerimento para alteração do nome da Câmara dos Deputados para Câmara Federal, como aprimoramento democrático e diretriz afirmativa para o avanço da participação das mulheres na política. Sem surpresas, não avançou.
Não é apenas a troca do nome, é ressignificação da imagem, da (auto)percepção social. É sobre estar no vocabulário. Trata-se de gramática, não àquele livro escolar intransigente, mas dela como organizadora cognitiva, responsável por nossa forma de pensar, articular ideias e enxergar a realidade.
É, sobretudo, um assunto político, de democracia. Promoção da igualdade substantiva, que passa por equalizar as oportunidades desde nascença, com disposição para criação de um entorno que permita a obtenção de igualdade de resultados.
A maior participação de mulheres diversas na política ativa uma linguagem de mais equidade, que reflete e impulsiona a própria presença. As negras, indígenas, periféricas, brancas, LBTs, com deficiência, mais velhas, mais novas, gordas, magras, das águas, dos campos, cada experiência enriquece o vocabulário e o repertório do fazer político.
A língua não é sexista, racista, ou preconceituosa. O uso dela, sim. A língua é aberta, viva, pulsante e seguirá incorporando e assumindo as palavras que nomearão a realidade que queremos construir.
* Juliana Romão pesquisa a interseção entre gênero, raça, linguagem e política. Mestra em Comunicação (UnB), trabalha a desmecanização da fala pública.
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