As palavras perdem a autoria quando soltas ao vento. É que elas ganham novos significados quando agasalhadas nas pessoas que as interpretam. No mágico momento em que o dito pelo autor se aconchega no que é entendido pelo intérprete, o texto originário ganha outro contexto. Não é mais o mesmo. E assim continuamente. Novas gerações de palavras são nascidas e renascidas a cada acasalamento interpretativo. Atemporais. Múltiplas. Libertas dos rótulos de propriedade.
Na última semana, em um leve sopro reflexivo, escrevi um texto em que contava dos saberes do mundo das palavras proferidas em palestras, bem assim como dos dissabores quando não acolhidas pelos ouvidos fechados em insensíveis paredes. Referia-me ao tratamento patrimonialista, elitista e preconceituoso regulamente imposto às pessoas que exercem a profissão doméstica. Não tardaram os textos paridos dos ventres havidos de interação. Recebi diversos comentários, quase todos cúmplices das palavras expostas na ventania dos debates. Aprendi com eles. Reinterpretei-os em minhas próprias reflexões. Seres novos nascidos.
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Um desses relatos fez explodir em mim um vendaval de palavras, fatos e reflexões. É que pousou uma história que impressiona por reproduzir uma trágica realidade brasileira, nunca debatida pela sociedade ou mesmo órgãos estatais. E não discutida porque a parte mais abastada da sociedade dela se beneficia, patriarcal e patrimonialmente. Trata-se do aprisionamento dos sonhos, da desesperança com o presente e do confisco do futuro de incontáveis crianças não nascidas em berços economicamente esplêndidos. As crianças que são transformadas em “trabalhadoras como se da família fossem”.
Soprou-me, emocionada, uma advogada-amiga a sua própria história. A sua família, extremamente pobre, morava no entorno da rica e poderosa Brasília. Em razão da miserabilidade explícita, a sua mãe fora convencida a deixar que a sua filha mais velha, uma criança de dez anos, fosse morar com uma família brasiliense, com a promessa de que estudaria, conviveria como se membra da casa fosse e, sobretudo, ganharia algum dinheiro para ajudar os que ficaram. Tempo depois, foi a vez de sua segunda irmã ser também convidada para morar em outra casa brasiliense. Mesmas promessas. Idênticas esperanças.
Disse-me ela que não compreendia a súbita ausência das irmãs. Chorava com saudades das companheiras de diversão e de consolo, quando a fome precisava ser distraída. Diziam-lhe que as irmãs iriam trabalhar como babá, estudar nas horas vagas e que logo voltariam alegres e com presentes. Assim o tempo de ausência logo seria compensado em brincadeiras e saudades desembrulhadas. Nestas horas de esperanças nunca colhidas, sentia, confessou, um pouco de inveja da “boa sorte das irmãs”. Ainda mais quando as irmãs não voltaram, o que intuía ser em razão do esquecimento pela nova vida feliz.
Até que chegara a sua vez de ser adotada por uma terceira família. O medo de deixar os braços amorosos de sua mãe não a impediu de querer para ela o bom destino de suas irmãs. Achava que Brasília era um “lugar com muitas lâmpadas e luzes”, diferente da escuridão do quarto de caseiro da fazenda em que morava. Tinha apenas nove anos de idade. Não chorou com a partida. A sua mãe sim. E muito. Partiu. Levou com ela apenas uma boneca que antes pertencera à filha da proprietária da fazenda. Era a sua garantia de companhia pelo caminho ainda desconhecido. Nunca esqueceu do trauma. Que poderia ser agravado se a realidade a transformasse na mais nova membra da categoria profissional das “trabalhadoras como se da família fossem”.
Mas o destino assim não o quis. A vida lhe apresentou um rumo diferente. Outro lar. Novos irmãos. Fora tratada como se da família fosse. Cuidava e era cuidada. Era respeitada e amada. Estudou na mesma escola de seus irmãos. Com eles compartilhou sonhos e projetos de vida. Formou-se em Direito. Logo fez da advocacia a sua missão. Não menos importante do que a de saber de suas irmãs. Encontrou-as trabalhando como domésticas. Não tinham estudado. Eram “trabalhadoras como se da família fossem”. Sentiu-se culpada pelos infortúnios a elas impostos. Mas a maternidade também a presenteou e, com ela, presenteou a si mesma com a compreensão do sacrifício que passara sua própria mãe. Perdoou. E se sentiu perdoada.
Sabe ela que o perdão pessoal não se confunde com o perdão estatal. Tampouco esconde a omissão da sociedade no combate ao sequestro da infância. Diariamente praticado. Sem disfarces. A sua vida lhe ensinou que é preciso coibir, urgentemente, a prática de coisificar as crianças sob o manto da caridade ou de uma solidariedade que sequer esconde a apropriação ilícita do trabalho infantil. Compreendeu que os sonhos, os projetos de vida e a dignidade de cada criança nascida da histórica desigualdade brasileira não podem ser escolhidos pelo acaso. A vida não pode ser um jogo de loteria. O destino não pode determinar o caminhar trilhado pela estrada da vida, ainda mais por crianças destituídas do poder de decisão. Como advogada, minha amiga luta para extirpar do Direito a categoria profissional das “trabalhadoras como se da família fossem”. E das pessoas escravizadas.
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