Faço das minhas andanças pelo Brasil, não raro como convidado para palestrar sobre a importância da inclusão como ferramenta de trabalho da advocacia, uma das minhas fontes prediletas de saber. Saberes recíprocos, é bom que se registre. Adquiro-os já no desembarcar do avião, quando recepcionado pelos organizadores do evento. Aproveito esta etapa para compreender o formato da palestra, o público e o que eles esperam da minha fala. As explicações servem-me de aprendizado e de escolha do mote que utilizarei no meu costumeiro falar de improviso. Essa sequência de troca de saberes permanece até o momento em que ocupo a tribuna, quando o mote escolhido para a fala se torna uma certeza. Cumplicidade que continua na fase interativa dos debates, pois, como ensinou Albert Einstein, “não são as respostas que movem o mundo, são as perguntas”.
Não pára aí! É que a parte que compreendo como fundamental para a troca de saberes – confessadamente a que mais gosto – tem o seu auge no pós-palestra, especialmente quando saímos das formalidades dos palcos para ingressarmos no mundo descontraído das conversas igualitárias de um barzinho. É na ambiência dos bares e dos jantares pós-eventos que os saberes são expostos sem máscaras, sorvidos espontaneamente e sem regras predefinidas. Neles, os saberes são servidos em doses fartas, pouco importando os diplomas e as diplomacias impostas pelos cargos. As pessoas divertidas cativam as melhores atenções, no mesmo brinde em que as chatas se exibem em falas irritantes. Enfim, os saberes e os dissabores das tabernas da vida são frequentadores assíduos da escola que escolhi para aprimorar o meu pouco conhecimento.
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Um dos episódios marcantes e que fora incorporado em definitivo nos arquivos de minha doméstica memória, ocorrera no pós-evento de uma palestra que tinha como tema central o princípio da dignidade da pessoa humana. Na ocasião falei da importância da Constituição Federal como marco histórico comprometido com a inclusão dos grupos mais vulnerabilizados, abandonados em direitos e garantias pela persistente mentalidade patrimonialista que cisma habitar em solo brasileiro. Lembro-me da reação positiva ao que compartilhei da tribuna do auditório, atestado nos saberes trocados na fase das perguntas, cumprimentos e fotos.
O anfitrião, famoso pelo seu prestígio jurídico-econômico, organizara um jantar em um restaurante que também preenchia a mesma fama de seu patrocinador. E, de fato, entre comes e bebes, a noite seguia para integrar o rol daquelas absolutamente agradáveis e difusoras dos saberes compartilhados. Até que, desavergonhada e desavisadamente, o dissabor fora nos servido de forma indigesta. Uma das convivas resolvera criticar a Emenda Constitucional 72/2013, que pretendera “estabelecer a igualdade de direitos trabalhistas entre os trabalhadores domésticos e os demais trabalhadores urbanos”. Dentre os aperitivos patrimonialistas destilados, despejou a sua raiva por ter que pagar à “membra da sua família” alguns dos poucos direitos criados e secularmente negados aos trabalhadores domésticos.
Devorado o preconceituoso alimento da desigualdade explícita, outros comensais cuidaram de pôr em mesa os seus próprios ingredientes antissociais e classistas. Intercaladas nas garfadas elogiosas aos finos pratos, desfilavam argumentos insossos em humanismo e destemperados de sensibilidade social. Sem o estilo literário de Gilberto Freyre, o mantimento elitista contido na “Casa Grande e Senzala” – ainda presente na arquitetura dos escuros quartinhos incrustados em reluzentes mansões – era devorado sem moderação.
Percebia-se, ali, a razão da resistência à compreensão de que a relação trabalhista doméstica não é uma servidão feudal, tampouco uma repristinação interpretativa da legislação imperial. A advocacia trabalhista – presença majoritária naquela agitada mesa – não compreendia que o trabalho digno seria um direito natural para a profissão de quem cuidava da sua casa e de sua família, em detrimento de sua própria casa e família. Parecia ela esquecida das ações judiciais que, cotidianamente, comprovavam os salários aviltantes, a sonegação previdenciária, a jornada extenuante, as humilhações, os assédios morais e sexuais, a absurda diferenciação nas comidas servidas, a proibição de acesso a lugares comuns e outras formas de “coisificação” do empregado doméstico.
Ouvindo-os, ainda em silêncio, compreendi que não entenderam o sentido da minha palestra sobre o princípio da dignidade da pessoa humana. Os saberes servidos em palavras não foram compreendidos ou mesmo compartilhados em empatia. Então resolvi apresentar a guloseima da realidade aos ávidos comensais, assumindo o dissabor de uma provocação reflexiva. Queria que eles percebessem que os direitos trazidos na Emenda Constitucional 72/2013 eram mínimos para nós, mas essenciais para a classe trabalhadora doméstica, a mais vulnerabilizada das vulnerabilizadas categorias profissionais. Aproveitei que tinham demandado, em orgulhosa euforia, o vinho mais caro do cardápio, para interromper o garçom. Dirigindo-me a ele, disse:
“Por favor, companheiro, não abra o vinho! Proponho, então, um trato em forma de brinde e compromisso. O preço do vinho corresponde ao aumento anual dos direitos criados pela Emenda. Nós não o sorveremos. Economizaremos. E pagaremos melhor aos nossos empregados domésticos. O vinho para nós é um saboroso supérfluo, mas para eles um doloroso complemento de vida. Topam?”
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