Brasileiras e brasileiros acordaram na sexta-feira, 24 de abril último, com a já conturbada cena política nacional ainda mais mexida (e veja que não se vive um dia sequer de tédio nessa arena desde 2013, pelo menos).
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Naquela manhã, Sergio Moro chamava uma entrevista coletiva para entregar o cargo de ministro da Justiça e Segurança Pública. Aproveitou o holofote final no Executivo para descortinar um conjunto de controversas ações do ex-chefe Jair Bolsonaro, a começar por suposta interferência do presidente da República na Polícia Federal. Algo que ainda aguarda investigações e explicações adicionais. Inclusive do próprio Moro, sobre, por exemplo, há quanto tempo tinha conhecimento, ou sofria dessas e de outras atitudes não republicanas de Jair (não republicanas para ser cortês aqui). E, portanto, se lá atrás calou-se quando devia falar.
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Mas o rosário de acusações e lamúrias do ex-juiz da Lava Jato, embora bombástico (inclusive para rachar a base de apoio do presidente), seria pouco para o atual e frenético Brasil. Seria pouco, sobretudo, para o visceral Bolsonaro.
Em empreitada na qual tem sido desgraçadamente obstinado, ele largou a pandemia lá no pé das prioridades do dia, e também foi para a tela da TV. Acompanhado de seus ministros e de mais um punhado de adoradores, proferiu um dos pronunciamentos mais aparentemente desconexos, mesmo para ele, que não raro fala ao país como se estivesse em um boteco em fim de noite, e não num dos cargos mais importantes do Estado brasileiro.
Visto por muitos analistas naquele dia como paranóico e perturbado, por tratar ao mesmo tempo de traição, da sogra, de tacógrafos e do aquecedor de piscina do Alvorada, o discurso do presidente não foi tomado na seara dos devaneios pela professora Júlia Costa. Essa é a razão do termo “aparentemente” ter sido negritado por mim no parágrafo anterior.
Doutora em Literatura e Cultura, e mestre em Teoria da Literatura, Júlia pesquisa as relações performáticas entre o dito “real” e o ficcional. Na literatura, no teatro… e na cena política.
Não é de hoje, a professora se lança nos submundo das redes bolsonaristas, de onde recolhe elementos e subsídios para seus escritos e estudos. “Muitas vezes é possível prever até as próximas ações do presidente, como a demissão de ministros, por exemplo, antes mesmo de virem a público. A partir desses canais”, conta.
O discurso do presidente, de ruptura com o seu então ministro mais popular, rendeu uma atenta análise da docente no Portal Catarinas. Veio carregada de alertas, especialmente para quem viu ali apenas ressentimento, paranóia, e para quem até se divertiu com a aparente desconexão de Bolsonaro. “Quase nada do que ele faz é espontâneo como ele faz parecer. Há método por trás, e há uma estratégia de manter sua base satisfeita e entusiasmada com suas ações”.
Na entrevista a seguir, Júlia Costa analisa Bolsonaro e o bolsonarismo, as ciladas e os caminhos de atuação para o campo progressista, e fecha com uma leitura sobre o momento da educação no Brasil, seu campo profissional, afetado por uma pandemia e por um governo errático também nessa seara.
Júlia, no dia da saída de Sergio Moro do governo, Bolsonaro chamou uma coletiva para, em tese, rebater as acusações feitas na parte da manhã pelo seu ex-ministro. Enquanto muitos viram um Bolsonaro aparentemente desconexo, falando entre outras coisas de aquecimento de piscina e tacógrafos, você viu método e estratégia. Que elementos você detectou nesse sentido, e que resultados o presidente esperava colher disso?
Sou formada em literatura, professora e pesquisadora de literatura e teatro. Então, para mim, é muito importante ler os discursos, analisar a linguagem, perceber as cenas propostas, inclusive na política. E Bolsonaro, assim como outros presidentes eleitos no mesmo sistema explosivo/conflituoso ao redor do mundo (como Trump), tem método de criação de cenas e discursos para se comunicar com sua base fiel, que é quem dá sustentação ao seu governo. Infelizmente, o que muitas vezes parece desconexo ou risível, é cuidadosamente preparado para gerar efeitos na oposição e na base.
Além disso, acompanho as redes bolsonaristas há um tempo, desde antes das eleições, e sou de certa forma familiarizada com a forma como discutem nessas plataformas (seja em grupos de whatsapp, twitter, facebook etc), e com os assuntos que pautam as mensagens em cada uma delas, assim como também percebo algumas estratégias de levantamento e propagação dos assuntos ali, que costumam ocorrer para endossar ou preparar o público antes de anunciadas pelo presidente.
A base bolsonarista é muito fiel, mas responde a uma série de valores um pouco diferentes entre si, não sendo exatamente um grupo uniforme. Então, por acompanhar suas redes e saber dos assuntos que circulam por ali, consegui reconhecer uma série de “recados” a cada um desses grupos.
Aquela [a saída de Moro] foi uma das maiores crises enfrentadas pelo governo, principalmente em termos de possível perda de popularidade, e trouxe à tona críticas ao presidente em temas muito sensíveis, como a corrupção e o acobertamento dos atos dos filhos.
Bolsonaro, na defensiva, precisava conseguir retomar o apoio da sua base. O discurso é fragmentado pois, como disse, as demandas desse grupo são múltiplas, e respondem a subgrupos distintos. Há, por exemplo, categorias profissionais privilegiadas por ações do presidente, e das quais ele de certa forma cobrou fidelidade naquele momento de ataque, como os taxistas e caminhoneiros.
Há também um grupo que se ampara nas aparências de honestidade e austeridade de Bolsonaro (e ele precisava garantir sua manutenção de apoio nesse sentido, consideradas suas melhores características), assim como há os defensores de valores morais, responsáveis por grande parte de seu apoio mais ruidoso (os que, ancorados em uma proposta patriarcal e machista, regulam os corpos das mulheres, exaltam o valor da família, questionam as identidades de gênero e sexuais etc). Para esses, houve uma série de mensagens garantindo que o presidente continuava empenhado em defender essa pauta.
E, claro, há um forte apoio dos grupos religiosos, em especial dos cristãos neopentecostais, cujo imaginário é diuturnamente alimentado por uma ideia sacra da missão do Bolsonaro na (re)construção do país, tomado por valores seculares. Bolsonaro também precisava enviar um recado a essa grande base, e reafirmar seu lugar de enviado de Deus, ao mesmo tempo em que deslocava Moro de uma perspectiva positiva dentro desses planos, ressignificado agora como um traidor.
Claro que muitos apoiadores somam mais de uma dessas perspectivas, mas Bolsonaro precisava garantir que se mantivessem acesas para afiançar seu apoio ruidoso e fidelizado.
O que acho importante em toda essa situação, como em quase todas as outras provocadas pelo presidente, é que quase nada do que ele faz é espontâneo como ele faz parecer. Há método por trás, e há uma estratégia de manter sua base satisfeita e entusiasmada com suas ações.
Ele precisa dessa base, pois vem perdendo apoio entre todos os demais setores, exceto do seu grupo mais fidelizado. Essa base se informa principalmente a partir de redes sociais, em especial dos canais do presidente e seus aliados, canais de comunicação e jornais dedicados, seja no facebook, youtube, twitter, instagram e whatsapp.
Há uma rede muito grande de produção de conteúdo, e a forma como a informação corre ali é diferente dos grandes jornais. Por isso, há jogos de palavras, gírias e assuntos que não chegam para a maior parte das pessoas, mas que são bem conhecidos da sua base. Muitas vezes é possível prever até as próximas ações do presidente, como a demissão de ministros, por exemplo, antes mesmo de virem a público, a partir desses canais, que já preparam sua base para os temas e ações abordados por Bolsonaro logo em seguida.
Em seus textos e postagens, você tem emitido reiterados alertas sobre as estratégias diversionistas de Bolsonaro, seus filhos e seus ministros, que a todo momento pautam o debate público com polêmicas plantadas (vide aparições de Abraham Weintraub e outros), enquanto temas sensíveis, como a péssima gestão federal da pandemia, acabam sendo menos discutidos. Qual a saída para que a sociedade possa, ao mesmo tempo, fugir dessas ciladas, e não permitir que os absurdos plantados pelas redes da extrema-direita sejam naturalizados?
De início, temos que considerar que este governo é muito eficiente e perverso no uso da informação e na produção de conteúdo, contando com uma rede muito articulada de produção e divulgação em múltiplas plataformas. Tendemos a usar as redes sociais como espaços pessoais, enquanto uma grande parte da extrema-direita, em vários países, incluído o Brasil, tem utilizado esse espaço como arma (de guerra) política, de forma muito articulada, com método e tática.
Sobre a saída, infelizmente, não tenho essa resposta de forma certeira e, acho, ninguém ainda a tem. Mas precisamos debatê-la e construí-la, pois o que vejo é que estamos sendo muito reativos nas nossas interações, e pouco estratégicos.
A primeira coisa que precisamos saber e lembrar é que os atos, falas e gestos do presidente e dos seus ministros, assim como dos grupos que produzem os memes, fakenews e comentários, que hoje inundam nossas redes sociais, são propositalmente construídos para gerar nossa indignação e mover nossas reações, seja para seu próprio gozo, seja para desviar nossas atenções e ações para outros temas que não aqueles de que de fato poderiam sinalizar seus pontos vulneráveis.
É importante frisar que nossa indignação é legítima e necessária (pois não podemos nos anestesiar diante da barbárie), mas nossas ações e reações a ela precisam ser mais estratégicas. Insisto, nossa indignação é justa, pois os atos e falas bolsonaristas têm atacado sistematicamente nossas parcas conquistas democráticas, ferindo-nos como sujeito e como civilização, e em várias áreas ao mesmo tempo. Por outro lado, têm feito com que estejamos cotidianamente pautados por discursos que, na maioria das vezes, têm pouca ação prática e muito diversionismo.
Por isso, ao simplesmente reagirmos a esses ataques divulgando os materiais que eles produzem, nós os favorecemos por três vias simultâneas:
- a) por aumentar e muito o alcance dos gestos e palavras desses grupos, ao divulgá-los ainda que acompanhados do nosso repúdio. Ampliamos o público e mantemos em pauta as questões postas por esse grupo. Essa estratégia, que segue em alto uso, foi muito utilizada no pré e pós golpe de 2016, para lançar ideias e pessoas até então pouco conhecidas, mas que, ao viralizar, ganharam adeptos rapidamente. Foi o caso de muitos que se candidataram, e hoje ocupam cadeiras no nosso poder legislativo, por exemplo;
- b) por alimentar as bases bolsonaristas. Há um componente bastante perverso nos jogos políticos polarizados, que é o desejo aberto de derrotar o outro, mais do que ter ganhos políticos e práticos. Cada vez que nos indignamos em massa e repudiamos algum ato do governo, parte de sua base comemora abertamente nossa “derrota” e nossa “irritação”, e reafirma sua posição ao negar o posicionamento de seus “oponentes”. É um jogo infantil, mas que tem sido usado para manter sempre acesa uma parte do eleitorado que o apoia. Assim como também nosso “ataque” aos seus atos coloca Bolsonaro sempre como aquele que precisa ser defendido, acendendo novamente sua base, que sente que está sempre em perigo, e que precisa de atitudes ruidosas de manutenção de poder;
- c) por último, mas muito importante: ocupamos um espaço e um tempo precioso de nossas timelines, da nossa energia e de nossos interlocutores com a pauta da direita extrema, de forma reativa e não propositiva. E, de um lado, somos levados a puxar o nível do debate para baixo, ao invés de seguir a discussão a partir do ponto em que o debate de fato se encontra, ou que poderia avançar e, de outro, deixamos de discutir o que de fato queremos propor para a pauta pública. Ficamos exaustos e adoecidos por ter que defender o que, até pouco tempo atrás, parecia superado, e deixamos de avançar na construção de um projeto comum e mais democrático.
Com nossa exaustão política, ganha o bolsonarismo. Aliás, com nossa exaustão e com o clima bélico, pois a manutenção do seu governo se alimenta mais pelo conflito e pela constante necessidade de defesa da sua base do que pelos resultados concretos entregues, que são parcos.
Não conseguiremos abarcar tudo, pois a estratégia deles é justamente nos esgotar, lançando polêmicas, infringindo as leis ou atacando nossos direitos de forma intensa e constante. Estamos quase nos habituando a ter um ou mais ataques todos os dias.
Precisamos então, a meu ver, primeiro, aprender a filtrar o que vale discutir; o que vale judicializar (pois algumas questões, mais do que publicidade, merecem judicialização, e isso demanda organização social); o que vale estrategicamente ignorar e para onde encaminhar nosso debate. E depois, ao saber o que vale discutir, pensar como debater de uma forma a não propagar ainda mais o material que eles produzem.
Ao mesmo tempo, como promover esses necessários debates, quando os fatos – inclusive os relativos às fragilidades e incoerências do bolsonarismo – parecem não importar, e num momento em que a extrema-direita parece sempre alguns passos à frente na guerra da comunicação?
Como disse antes, essa resposta ainda precisa ser construída, e não acredito que ninguém tenha essa saída sozinho. Acredito que muitas estratégias precisariam ser usadas ao mesmo tempo, uma vez que os ataques à humanização dos debates e à desacreditação dos fatos vêm de múltiplas fontes e formas.
Mas, acredito também que, ao saber o que é estratégico ser discutido, precisamos encontrar formas de desarmar o discurso deles, e não divulgá-lo. Precisamos encontrar seus pontos vulneráveis e ser mais propositivos do que reativos. Simplesmente demonstrar nosso repúdio tem se mostrado ineficiente. Mas, quando conseguimos sinalizar, por exemplo, a desonestidade, a agressividade e a negligência dos atos e falas bolsonaristas, nós o inscrevemos em outro ambiente, que não o que ele tenta construir todo o tempo, que seria, por exemplo, o da honestidade, autenticidade e força.
Insistir nos fatos e no valor da vida também é uma obrigação nossa, ainda que as forças contrárias sejam muito intensas.
Você é uma profissional da educação. Nesse setor, a pandemia parece ter exposto os imensos desafios em um país com tantas desigualdades como o Brasil. Um deles, o homeschooling, modelo que vinha sendo tão defendido pela extrema-direita como “remédio para a doutrinação de esquerda”. Ironia do destino, o ministro da Educação voltou a tuitar na defesa do retorno às aulas, e que “o ano não pode ser perdido”, no momento em que a curva diária de casos e mortes por covid-19 continua batendo recordes. Que perspectivas você vê para esta área hoje e no pós-pandemia?
Bom, acho que uma primeira questão aqui é entender que o que chamam de homeschooling é bastante mais radical do que o que estamos vivendo nesse momento. O homeschooling prevê uma não relação institucional do estudante, tendo toda a sua educação formal a cargo dos pais ou responsáveis legais, desde a seleção ou produção de materiais, até a prática das aulas, sendo estas terceirizadas ou não.
Se hoje nos sentimos desamparados nesta situação emergencial, havendo ainda a possibilidade de contar com os materiais didáticos, professores/as, metodologias, e amparados pelas escolas, ainda que difícil, no homeschooling, a proposta é abrir-se mão completamente desse amparo institucional, e tudo que o acompanha.
O que estamos vivendo agora é uma situação emergencial, que está longe de substituir completamente a educação presencial, a socialização e todos os demais ganhos que temos com o funcionamento das escolas. Se está ainda funcionando, é graças ao empenho extremo dos envolvidos (professores/as, alunos, mães, pais, gestores escolares etc), que, desamparados por uma articulação central, estão fazendo o melhor que podem com os poucos recursos que têm (desde equipamentos a saberes específicos para aulas à distância).
O que a meu ver o ministro defende agora não é a qualidade da nossa educação presencial, mas sim um retorno à suposta “normalidade”, e uma negação da seriedade da pandemia, como ele fez também com a defesa da aplicação do Enem deste ano.
Essa estratégia encontra seu gérmen na posição do próprio Bolsonaro, que tenta diminuir discursivamente os impactos causados por uma pandemia, que paralisaram as atividades educacionais e, em grande parte, produtivas, do mundo inteiro.
De um lado, se nega a seriedade e magnitude da crise da pandemia, e, por outro, se exime de todas as consequências que ela inevitavelmente irá trazer, e que estão sendo agravadas pelas suas próprias ações negacionistas e de incremento de conflitos.
No caso da educação, promovem a acentuação das desigualdades no favorecimento de uma classe social, em lugar de planejarem estratégias de adequação e diminuição de danos para os alunos e suas famílias, como a maior parte dos países está fazendo (seja na distribuição de alimentos que remediariam a falta da merenda escolar, seja em assumir a responsabilidade por aumentar o acesso à internet, ou ainda na articulação da relação entre instituições de ensino, professoras/es e pais, que, neste momento no país, está acontecendo de forma individualizada, com grandes prejuízos para todas as partes).
Negar a pandemia, como eles vêm fazendo, é uma estratégia de inação, de se eximir da responsabilidade de articular soluções de emergência para o momento que estamos passando, uma das maiores crises sanitárias do século, que já resultou na morte de dezenas de milhares de pessoas, e na vulnerabilização de grande parte dos/as brasileiros/as.
Aliás, esse é um grande ponto de fragilidade de seu governo nesse momento. Bolsonaro precisa de cenas, discursos e sujeitos que continuem sustentando a minimização da importância da pandemia. E seus ministros, secretários e empresários apoiadores têm agido nesse sentido (veja, por exemplo, as atuações do Weintraub, da Damares e outros).
Sua insensibilidade e inação diante da pandemia ficariam a descoberto se ele admitisse o que de fato é: uma crise que exige um trabalho sério de articulação de recursos e ações, que ele não está fazendo. Para negar isso, continuará provocando piadas, minimizações discursivas, promessas de remédios milagrosos, e incentivando o “retorno à normalidade”, pois sabe que, conforme a pandemia cresce no Brasil, a cobrança por suas ações e sensibilidade também crescerão, causando sérios danos políticos à sua imagem.
- Veja mais: em seu perfil no facebook, Júlia Costa escreve sobre a divulgação do vídeo da reunião ministerial que desencadeou a saída de Sergio Moro do governo. Leia AQUI e AQUI.
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