por Marcelo Viana Estevão de Moraes*
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, sugeriu retomar a discussão e votação do substitutivo à Proposta de Emenda Constitucional nº 32, que trata da reforma da administração pública. O substitutivo, embora tenha atenuado o texto original, é uma colcha de retalhos que não enfrenta os problemas reais que deveriam ser objeto de uma agenda que combinasse proposições legislativas infraconstitucionais com a adoção de medidas de gestão voltadas para o alinhamento estratégico das ações governamentais, avaliação de políticas públicas e de desempenho funcional, simplificação administrativa e desburocratização. O erro básico da proposta é o pressuposto de que a essência dos problemas administrativos seja de natureza normativa e constitucional.
O mito subjacente à proposta original é a de que a eficiência e a eficácia da máquina pública seriam afetadas negativamente por causa da estabilidade do funcionalismo. Ora, a estabilidade nunca foi um direito absoluto, mas para que ela possa ser quebrada é preciso que haja capacidade gerencial para executar adequadamente o devido processo administrativo: se o problema existe, ele não é constitucional, mas de gestão.
Dados da CGU mostram que servidores podem ser demitidos caso haja fundamentação legal para tanto, desde que de forma não arbitrária. É bom lembrar que os servidores que entraram sem concurso nos cinco anos anteriores à promulgação da Constituição de 1988 não eram estáveis e não foram exonerados nem no auge da crise fiscal dos anos 90. Por outro lado, a estabilidade funciona como uma garantia para que o servidor não seja coagido e arbitrariamente demitido caso se recuse a cometer ilegalidades. O combate à corrupção na administração pública não se coaduna com fragilizar o servidor honesto e cumpridor de suas obrigações em um ambiente ainda fortemente patrimonialista. Vale registrar o caso recente e rumoroso envolvendo tentativas de liberação irregular de joias milionárias apreendidas na aduana de Guarulhos.
A Emenda Constitucional nº 19, de 1998, deixou delineada uma agenda legislativa infraconstitucional ainda inconclusa. O bom senso recomendaria retomá-la, no todo ou em parte, agregando novos temas supervenientes, como a adoção do teletrabalho como instrumento de um programa de gestão e desempenho, a centralização de processos redundantes por meio do compartilhamento e digitalização de serviços, a cooperação federativa (como já se observa no marco da nova lei de licitações e contratos), entre outras questões concretas e bem definidas. No que concerne à cooperação entre os setores público e privado, à formatação das organizações públicas e à articulação federativa, já existe um amplo repertório de modelos institucionais e de mecanismos de contratualização que dispensam alterações constitucionais para sua adoção, demandando no máximo legislações ordinárias adaptativas.
Em matéria fiscal, não há um problema intrínseco à despesa total com pessoal no âmbito federal, que é a menor da série histórica desde a estabilização monetária dos anos 90 em termos de participação no PIB: 3,68% (valor orçado) e 3,63% (valor empenhado) do PIB em 2022. O quantitativo de servidores efetivos ativos do executivo federal (RJU) é hoje de cerca de 490 mil, o que equivale ao patamar de 2002, o mais baixo desde a promulgação da Constituição de 1988. O inchaço da administração federal é tão somente um mito antigo. O risco fiscal não está na folha de pessoal, sob controle, mas no impacto da atual política monetária.
O aperfeiçoamento da política de pessoal demanda mais ação administrativa do que legislativa, para o melhor dimensionamento da força de trabalho e de sua alocação, bem como o reforço de estratégias transversais de gestão de estruturas, serviços e carreiras públicas, com aumento de produtividade pela conjugação de inovações tecnológicas com novos arranjos de trabalho.
Nos últimos anos, os órgãos centrais do sistema de gestão da administração direta, autárquica e fundacional foram perdendo densidade, status e protagonismo e um certo viés fiscalista levou ao esmaecimento de iniciativas de reforço de capacidades institucionais para a entrega de resultados para a sociedade. A desidratação da função administrativa ocorreu paralelamente ao crescimento e autonomização da função de controle, reforçando o zelo por conformidades em detrimento da gestão de resultados.
A hipertrofia do controle procedimental junto com a burocratização crescente da execução orçamentária e financeira, legitimada por contextos fiscais adversos, levaram ao fenômeno vulgarmente denominado de “apagão das canetas”, ou seja, autoridades administrativas, crescentemente receosas de responsabilização em um ambiente cada vez mais complexo do ponto de vista operacional, são incentivadas a optar por estratégias minimalistas de ação para evitar ou reduzir os riscos decorrentes da limitação da discricionariedade do administrador público. O advento da Lei nº 13.655, de 2018, foi um passo para a reversão desse quadro, e a ideia de adoção de uma lei orgânica da administração pública poderia dar sequência a essa orientação, conforme foi cogitado no segundo governo Lula, funcionando como eixo condutor de um debate público sobre a reforma da administração, que deve evitar as armadilhas das grandes narrativas constitucionais, mais retóricas do que efetivas, e não poucas vezes contraproducentes.
* Marcelo Viana Estevão de Moraes é especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, pesquisador do Centro de Estudos Avançados de Governo e Administração – CEAG/UnB, doutor em ciências sociais pela PUC-Rio com pós-doutorado no IPOL/UnB, autor do livro A Construção da América do Sul: o Brasil e a Unasul (Appris, 2021). Foi secretário de Gestão (2008/2010) e secretário de Previdência Social (1994/1999) no governo federal.
** Esse texto faz parte de uma série de ensaios no âmbito de uma parceria entre a Anesp e o Congresso em Foco.
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