Na maior parte do seu tempo, a CPMI dos Atos Golpistas não conseguiu avançar para além das investigações sobre a lamentável invasão e depredação dos três prédios da República que já aconteciam na Polícia Federal e no Supremo Tribunal Federal (STF). Há, porém, dois méritos no relatório da senadora Eliziane Gama (PSD-MA) que merecem ser destacados.
O primeiro é que Eliziane organiza a narrativa do que houve. A leitura das mais de 1,3 mil páginas do seu texto bem explica por que ninguém pode considerar os atos de 8 de janeiro como um movimento isolado, um momento de loucura coletiva que levou manifestantes àquela obra de destruição. Eliziane mostra como tudo foi construído. Como aquilo fazia parte de um ardil para provocar grossa confusão no país. Grossa confusão que viesse a justificar uma intervenção das Forças Armadas. Que, no discurso, agiriam como pacificadores para, novamente no discurso, trazer o país de volta à normalidade. Para, agora não mais no discurso mas na prática, eliminar no país uma ditadura tendo o ex-presidente Jair Bolsonaro como o ditador de plantão.
O segundo mérito decorre do primeiro. Ao explicar a construção da tentativa de golpe que culminou no 8 de janeiro, Eliziane expõe um dos grandes defeitos político-culturais da sociedade brasileira, ou parte dela: a espera crônica de que as Forças Armadas apareçam para a solução de seus problemas, em uma espécie de intervenção redentora (aliás, não por acaso, um dos apelidos edulcorados do golpe de 1964 era justamente “revolução redentora”).
Essa parcela infantilizada da sociedade brasileira parece enxergar nos militares um papel de tutor. De pai disciplinador pronto a interferir para pôr ordem na casa. O problema é que sempre com uma violência excessiva e com pouquíssimo ou nenhum pendor democrático.
A proclamação da República foi já um golpe militar. E ninguém aqui está fazendo um discurso de promoção da monarquia. Se o império estava desgastado e já não atendia aos interesses da elite econômica do país à época, o fato é que essa elite econômica não produziu para o problema uma solução civil. E o resultado é que os dois primeiros presidentes brasileiros foram militares. O primeiro, Deodoro da Fonseca, renunciou. O segundo deles, Floriano Peixoto, governou quase que todo o mandato sob Estado de Sítio. Não deveria sequer ter sido presidente, com a renúncia de Deodoro da Fonseca, porque a Constituição da época dizia, como a atual, que em caso de vacância da Presidência antes de decorridos dois anos do mandato devem ser feitas novas eleições.
Floriano impôs-se presidente com a alcunha de “Marechal de Ferro”. Enfrentou diversas rebeliões no seu governo. A forma como debelou a Revolução Federalista é um dos capítulos mais sangrentos da história brasileira. Com a crueldade final de ter trocado o nome da capital de Santa Catarina, onde acontecia a rebelião, de Nossa Senhora do Desterro para Florianópolis, em sua própria homenagem.
Em 1930, Getúlio Vargas chega ao poder com novo auxílio militar, não do alto oficialato, mas dos tenentes. Sete anos depois, o Brasil passaria a ter o seu mais duro período de autoritarismo e ditadura.
O início do governo Juscelino Kubitschek tem uma intervenção do bem, quando o marechal Henrique Teixeira Lott, então ministro da Guerra, pôs os tanques na rua não para depor, mas para garantir a posse do presidente eleito. Duas tentativas de golpe acontecem no governo JK. Até que em 1964, o golpe instaura o regime militar e submete o país a 21 anos de ditadura.
A vitória de Tancredo Neves pôs fim à ditadura. Mas, de novo, viu-se o Brasil enredado por crises políticas crônicas e por instabilidade. Que outra vez parecem ter levado a parte infantil da sociedade a pedir nova intervenção do tutor militar.
Uma intervenção que, outra vez, seria um grande erro político. Primeiro, a sociedade precisa amadurecer para resolver ela mesma seus problemas. E entender que essa construção só se solidifica de fato pelo caminho do diálogo e do consenso, e não da imposição pelas armas. A história já mostrou seguidas vezes que a intervenção militar não é um favor que os senhores de farda fazem aos civis pondo ordem na casa. Autorizados, eles se instalam e, enquanto puderem, não saem mais. E o resultado é sempre sangue, lágrimas, morte.
Se o relatório de Eliziane servir para que nunca mais a sociedade civil avalie que a solução para seus problemas seja pedir intervenção militar, ele terá cumprido um importantíssimo papel histórico de amadurecimento da sociedade brasileira.
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