Dono de uma empresa de festas em São Paulo, Adipe Neto transformou a perda do pai, Adipe Miguel Júnior, vítima da covid-19, em desabafo e denúncia. Por meio de um post no Facebook, manifestou perplexidade com o comportamento do presidente Jair Bolsonaro em relação à pandemia, criticou a cobertura feita pela mídia e chorou de público a dor pelas circunstâncias que envolveram a morte do pai.
“Não pude velar nem pude ver o corpo dele, o que me ofereceram foi um saco preto lacrado com nome dele em cima”, relatou no texto, publicado no sábado (10).
Apesar da confirmação do diagnóstico de covid-19, tal condição não foi informada ao crematório: “Fizemos questão de avisar (…), pois os protocolos para casos suspeitos e confirmados são diferentes e a ficha que segue com o corpo deve conter um código grande e específico. Não foi o que aconteceu. Fato que poderia ter exposto agentes funerários a contaminação. Crime contra a vida”.
Também condena a frieza com que a imprensa a pandemia: “Os jornais deveriam parar de contabilizar os casos e mostrar rostos. Deveriam ter rostos nas capas de jornais e nas bancas de revistas diariamente e não números”.
Por fim, expôs sua indignação com Bolsonaro: “Senhor presidente, suas condolências são falsas, e eu não as aceito, guarde-as para quando algum dos seus queridos falecer. É revoltante te ver na televisão falando mentiras, deveríamos te tirar de onde você está pelo simples fato de contar mentiras. Desejo que os mortos e fantasmas dessa pandemia te assombrem pela eternidade”.
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Veja o texto abaixo, na íntegra, exatamente da maneira como foi postado sem qualquer correção ou ajuste de forma e conteúdo.
“O que me ofereceram foi um saco preto com o nome dele em cima”
“Sim, é um texto longo e te desafio a tirar 20 minutos do seu dia para ler e refletir sobre ele. Posso ter cometido erros de português e/ou de conceitos e estou aberto a aprender, caso seja esse o caso. Se puder leia esse texto com tempo e gentileza. Minha mãe Sylvia Regina Mattos Miguel está no facebook, mas minha irmã Karima não tem.
“Sabe aquele cara buona gente? Que é amigo do feirante ao dono do restaurante, que tira sarro de todo mundo de um jeito leve, descontraído e único, que faz questão que tu te sinta à vontade e mais do que isso, pertencente. Ele era humilde, amoroso, divertido, generoso e com certeza o melhor avô do mundo!” palavras do meu marido, Marco Seppi, sobre meu pai, Adipe Miguel Júnior, falecido em 6 de abril de 2020 de infecção por coronavírus.
Nesse momento em que começo a escrever esse texto faz exatamente 48 horas que ligaram do hospital onde meu pai estava internado pedindo para que algum familiar comparecesse lá pessoalmente. Dois dias antes tínhamos recebido a confirmação da infecção por Covid-19. Ninguém chama ninguém pessoalmente ao hospital para contar boas notícias.
O que se passou dali em diante ainda é atordoante na minha cabeça. Em várias conversas lembro do meu pai fantasiar sobre como seria o velório dele, ele ia aos velórios de todos os nossos conhecidos, tanto quanto ele podia, talvez numa forma de acumular pontos com o universo para que quando fosse chegada a hora dele ninguém o esquecesse.
Não pude velar nem pude ver o corpo dele, o que me ofereceram foi um saco preto lacrado com nome dele em cima. Não ritualizar essa passagem é doloroso e desumano. Não recebi fisicamente os abraços dos meus amigos e parentes queridos. Não pude abraçar nem consolar minha mãe que teve contato com ele e está em quarentena. Não pude ficar ao lado do caixão como ele tinha me pedido e ir dizendo para ele o nome de todos que lá estiveram para o último adeus. Não pude dar a ele o último adeus e homenagens que ele merecia.
No começo não sabia se deveria expor essa dor, trabalho com festas e diversão e não costumo postar muito. Mas em consenso familiar resolvemos postar, nada foi mais assertivo do que isso. Ao receber essa paulada de dor e desumanidade, recebemos uma enxurrada de amor e solidariedade. E é desse amor que eu e minha família temos literalmente nos alimentado para superar tudo isso.
É claro o despreparo das autoridades desse país para lidar com essa pandemia. Meu pai foi testado positivo para covid-19, mas o atestado de óbito que entregamos no crematório estava como suspeita de coronavírus, ou seja provavelmente ele não entrou na estatística. Fizemos questão de avisar o crematório que tratava-se de um caso confirmado de corona, pois os protocolos para casos suspeitos e confirmados são diferentes e a ficha que segue com o corpo deve conter um código grande e específico. Não foi o que aconteceu. Fato que poderia ter exposto agentes funerários a contaminação. Crime contra a vida.
Durante a tortuosa, dolorosa e demorada burocracia em liberar o corpo e atestados, tive tempo de conversar com diversos agentes funerários que relataram que desde o começo deste ano existem a cada dia mais mortes por dia na nossa cidade, em sua maioria classificadas como casos de morte por questões respiratórias e não de coronavírus. Ou seja, está errada a forma como estamos contando os mortos.
Acredito que quando apontamos um problema na sociedade da qual fazemos parte não podemos apenas apontar um erro sem nos colocar como parte do problema. E é como parte desse problema, parte dessa sociedade que venho dividir as minhas percepções sobre o que estamos passando.
Nós precisamos mudar nossa sociedade.
Os jornais deveriam ter relatos como o meu de pessoas que passaram por isso e que possam dividir suas percepções de tudo, esse estado de choque com a morte é muito elucidador.
Politizaram o vírus, politizaram as vítimas e seus familiares.
Senhor presidente, suas condolências são falsas, e eu não as aceito, guarde-as para quando algum dos seus queridos falecer. É revoltante te ver na televisão falando mentiras, deveríamos te tirar de onde você está pelo simples fato de contar mentiras. Desejo que os mortos e fantasmas dessa pandemia te assombrem pela eternidade.
Precisamos mudar os políticos, precisamos tirar esse presidente de onde ele está. Ele tem falado calúnias na televisão e tudo que podemos fazer é panelaço? Me poupem, poupem os familiares das vítimas de ouvir suas panelas arrependidas. Parte de vocês escolheram esse senhor para comandar o país e agora vejam a forma como ele gerencia a maior crise de saúde e economia do nosso século. Tenho uma empresa de eventos, fui checar a ajuda do governo. A ajuda do governo vêm com juros, que ajuda é essa? E não é um juros muito abaixo do que já vinha sendo cobrado antes da crise.
Precisamos mudar a economia.
Precisamos encarar que passaremos por uma das maiores recessões que nossa geração já viu. Até que tenhamos a cura e vacina para esse vírus estaremos a mercê de quarentenas e isolamentos e temos que entender isso como sociedade. Precisamos mudar a forma como remuneramos nossos funcionários, é preciso mudar a porcentagem de lucro para as empresas e aumentar a porcentagem de participação dos colaboradores. Devemos valorizar mais profissões essenciais como agentes funerários, garis, enfermeiros, bombeiros, policiais, assistentes sociais e tantos outros pois são eles que estão se pondo em risco para manter o que ainda entendemos como sociedade. Devemos ser governados por pessoas que ganham 1 salário mínimo por mês, que ande de transporte público, more na periferia e que seja atendido pelo SUS. Devemos taxar grandes fortunas de forma contundente. Celebridades e grandes empresários doando meia dúzia de milhões quando isso representa menos de 0,5% de suas fortunas, me poupem. Empresários usem suas fortunas para manter salários, amigos usem suas reservas para manter seus empregados domésticos, vendam seus jatinhos suas mansões, vcs não precisam disso, doem suas fortunas para salvar o que ainda podemos de vidas… Usem seu dinheiro para salvar esse mundo e talvez a sua forma seja bancando pessoas com suas ações e bens.
A riqueza monetária deste mundo está na mão de 1% das pessoas, que tem mais do que o dobro da riqueza do resto da humanidade combinada (de acordo com a Oxfam). Leia e releia a frase anterior até vocês entenderem o que eu disse, é importante assimilar essa idéia.
Pessoas continuam morrendo de fome e doenças básicas como diarréia. Isso é de envergonhar nossa passagem pelo mundo, e nossa história como indivíduos.
Usamos uma menina menor de idade (Greta Thunberg) para defender o planeta e ser nossa embaixadora para alertar os maiores presidentes do mundo sobre as mudanças climáticas, expondo-a a canalhices do mundo machista e adulto, que vergonha de nós. Era obrigação nossa dar a ela e a todas as crianças um lugar melhor para elas morarem. Ao contrário disso estamos elegendo pessoas de caráter duvidoso. Precisamos deixar de ser sexistas, racistas e fóbicos em todos os aspectos e continuo a me incluir como parte desse problema. É um exercício diário de ressignificação e aprendizagem, o que está engendrado em nós como cultura são conceitos muito errados e temos que fazer longos, diários e comprometidos exercícios para mudar a forma como enxergamos isso. Mesmo assim, com mais informação e consciência, ainda continuaremos a ser sexistas, racistas e fóbicos, pois infelizmente isso é parte de nós para sempre, daqui para frente irá depende de nós a quem alimentamos internamente. Mas com esses exercícios temos a chance de ensinar algo mais nobre e virtuoso para os que vem depois de nós, para que assim talvez não seja engendrado neles a maldição desses preconceitos que habita nós, mas que dói só nas minorias dessa sociedade.
Se estivermos todos juntos e aceitarmos as nossas pluralidades seremos maiores do que os que nos oprimem. Dentro da minha própria minoria (LGBTQIA+) vejo como não nos aceitamos, não aceitamos nossa pluralidade. Nos rotulamos e nos dividimos por looks, likes, gomos, grau de feminilidade/masculinidade, categorizamos as pessoas pelo físico, pelos tamanhos e nos damos valores bons e ruins por isso. Continuo aqui a dizer que eu sou o primeiro a precisar a mudar, se estou apontando o dedo estou começando por mim mesmo.
O mundo precisa mudar.
Espero que lembrem-se bem o rosto dos governantes que desprezaram essa pandemia e politizaram o discurso e ações, espero que vocês vejam refletido nos corpos de todos nossos mortos a irresponsabilidade de um líder escolhido pelos motivos errados. Que vocês lembrem a negligência que é priorizar a economia e não as vidas. É preciso pessoas para fazer a economia e não o contrário. Não politizar o discurso, mas entender que tudo que fazemos é um ato político.
Precisamos mudar a forma como escolhemos nossos líderes, precisamos ser pessoas melhores para termos valores melhores e assim admirar qualidades mais nobres uns nos outros. Não vou politizar o assunto, a tentativa aqui é humanizar a discussão, mas a grande maioria dos meus conhecidos que votaram no atual presidente da república não o fizeram por admiração ao cara, fizeram por ódio a outro cara. Um ódio que poucos conseguem explicar, pouco sintetizado. Façamos terapia, por favor, todos nós, gastem mais tempo questionando-se do que apontando o dedo aos outros ou criando regras e padrões, interiorize-se. Se conheça e saiba os motivos reais de suas escolhas e seu real lugar de fala.
Postem as fotos dos seus entes queridos e dos entes dos seus amigos queridos que se foram, as pessoas precisam ver rostos e não números. Acho maravilhosa as redes sociais e acho que elas podem nos ajudar muito a manter essa conexão, e não só nesse momento, pois precisamos mudar a forma que nos expomos, precisamos mudar os nossos influenciadores. Precisamos admirar pessoas com mais valores humanos e menos materiais. Precisamos seguir pessoas diferentes literalmente. Continuamos a endeusar um ou outro em detrimento de todo o restante.
A dor que senti é tão concreta e tão cruel que preciso dividi-la com o máximo de pessoas que eu posso. E esse texto é sobre isso. Infelizmente iremos aprender com a dor, alguns de nós irá sentir ou está sentindo essa dor e ela é dura demais para ser carregada sozinha, por isso olhe ao seu redor e você achará a dor de alguém que vc consegue ajudar a carregar.
Estamos todos há dias trancados em casa, a mãe natureza nos colocou em espera. A minha maior dúvida é se entendemos de fato o que está acontecendo e se estamos nos transformando para a nova era que virá. E que urge vir. Os rios estão ficando limpos, podemos ver o Himalaia da Índia sem a poluição, a mãe natureza nos pede quarentena! Somos nós que habitamos a Terra e não o contrário, somos subordinados a ela e é isso que o coronavírus vem nos alertar. Parece que a cada 100 anos ela precisa lembrar isso a humanidade. São necessárias as peste para que o povo escolhido por deus seja liberto pelo faraó. Quantas pestes serão necessárias ainda? Quem é esse faraó? Do que precisamos nos libertar?
É preciso mudar a forma como fazermos tudo. Não vai haver normalização da vida, pois não há nada de normal perder tantas vidas em tão poucos dias. O mundo jamais será o mesmo, as pessoas não serão mais as mesmas e não estou dizendo como os cientistas apocalípticos, estou dizendo como um cara que sentiu a maior e cruel dor do mundo combinada com a maior comoção de amor e afeto e com isso entendeu que é preciso mudar e é preciso propagar essa idéia.
Algumas manifestações de carinho e solidariedade me deixaram completamente comovidos, o texto que meu marido postou, a ligação para minha melhor amiga em que só ouvimos um ao outro chorar, a mensagem de amigos que eu não falava há muito tempo ou amigos com quem tinha brigado, mensagens de empresários concorrentes no meu ramo de negócios, as flores que recebemos, as comidas, os áudios, os telefonemas que não tive forças para atender, enfim, eu e minha família temos nos alimentado desse afeto que estamos recebendo remotamente. Será que só sabemos nos manifestar afetuosamente e humanamente através da dor?!
Para você que ainda não perdeu ninguém, pare e pense nos seus familiares e amigos com pais e avós no grupo de risco e ligue ou escreva para eles. Liguem para seus pais, avós e amigos que estão passando por essa quarentena sozinhos. Façam as pazes com seus parentes e inimigos, acabem com as brigas e as guerras sejam elas quais forem. Baixem a guarda. Reconecte-se, parem de ter respostas tão rápidas a tudo, isso não é humano com vocês mesmos. Não esperem a dor chegar, não recomendo.
Meu pai partiu sem nossa despedida, mas o que veio com a perda dele foi amor, afeto, reconciliação, resiliência e ressignificação de conceitos. As empresas precisam mudar a forma como estão contribuindo para criar esse ambiente plástico e nocivo à sociedade e nós como sociedade temos que ser muito mais seletivos com o que e como consumimos. Os likes, seguidores, status, dinheiro, trabalho, cargos, jatinhos, fotos de pratos assinados por chefs nos valem do que agora? De nada. É tempo de se conectar com o real com o concreto. O que de fato temos valorizado como sociedade e como cada um poderia contribuir para mudar isso? Não sei, sei que tenho essa lição de casa agora.
Não esperem a vida voltar ao normal, não resistam, MUDEM. Há pouco tempo uma amiga plantou essa idéia na minha cabeça com a pergunta: -por que somos ou queremos ser resistência? Não temos de resistir, temos que ser os agentes da mudança. Pare por alguns minutos agora e reflita. Somos todos agentes potenciais dessa mudança. Se você sair dessa pandemia igual você entrou é por que vc não entendeu nada do que é estar vivo e qual o seu papel nesse momento.
Acredito que esse texto o é o único ritual que eu poderia fazer para homenagear meu pai, carrego o nome dele e prometi seguir com o legado dele. Entendo que é isso que estou fazendo ao sintetizar o que senti e entender que devemos aprender com essa dor.
Preparem-se! Não desejo o que senti para ninguém, mas isso será inevitável. Esteja pronto para compartilhar a dor com os seus queridos, ninguém é capaz de passar por isso isolado.
Em um certo momento de desespero me veio um sentimento de xxxx-se o mundo, xxx-se tudo, se meu pai morreu e tanta gente irresponsável continua viva, minha vontade era mais que tudo se acabasse com essa pandemia. Comecei a desejar que um meteoro nos atingisse o quanto antes e acabasse com tudo.
Mas aí me veio à mente minha amiga grávida que deve estar ganhando bebê nesse momento em que escrevo esse texto, os meus afilhado e afilhada de 1 ano, o filho adotivo de um amigo que acabou de ganhar sua família e no meu sobrinho que era o ser que meu pai mais amava no mundo e junto a memória de uma frase que escutei uma vez em uma igreja: Enquanto estiverem nascendo crianças é porque ainda há esperança.
Nesses dias eu entendi que a dor vai nos trazer o amor, o compartilhar a dor vai nos humanizar, nos humanizar vai nos fazer mais tolerantes. Vai depender só de nós como sairemos dessa quarentena.
Decidi que vou honrar o legado da minha família que uma vez já mudou de país para fugir de uma guerra e se abrigou neste país e ajudou a construí-lo. Temos o compromisso moral com essas crianças de deixar para elas um mundo muito melhor. E não estou falando de clima. Estou falando de material humano, estamos errando muito como humanidade. Nosso dinheiro, nosso trabalho, nossas ambições, nossa estética e nossos hábitos não podem ser maiores do que a experiência de estar vivo e o quanto honrar isso se faz necessário. Nos resta saber se seremos capazes de nos transformar dessa maneira.
Meus mais profundos sentimentos a todos que estão passando por isso e sabem da dor que estou falando. Que esses dias de trevas concretas que estamos vivendo seja partilhado com o mundo e que a nossa dor comova e transforme esse mundo.
Não vou deixar meu pai ser mais um número estatístico. Quero que ele seja um dos rostos dessa tragédia, que a história dele te comova e que essa reflexão com a qual ele me presenteou te faça mudar. Essa mudança será através da dor, do amor, da tolerância, do compartilhar e do se solidarizar com as mazelas desse mundo – por nós mesmos geradas, não pela força, pelas armas ou pelos radicalismos (de qualquer lado). Entendam os sinais da natureza. Ainda há tempo, mas talvez essa seja a última oração de muitos dos nossos.
Aproveitem esse tempo de páscoa onde talvez nosso redentor seja um vírus que veio trazer dor e com ela todo o restante que expus acima.
Disse alto, contando ao meu pai, o nome de todos que me escreveram, ligaram e dividiram comigo esse momento, esse foi nosso velório virtual.
Bento nasceu quarta passada, ainda há esperança!
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