Gabriela Lotta, Helyn Thami e Arthur Aguillar *
O enfrentamento à pandemia da covid-19 tem desafiado todos os países a desenvolverem soluções rápidas e efetivas para diminuir as mortes e mitigar os demais problemas decorrentes da crise sanitária. A pandemia pode ser definida como um problema perverso (wicked problem), conceituado como aqueles problemas que têm natureza complexa, contraditória, altamente mutável e multicausal. Problemas perversos exigem soluções complexas, flexíveis e que articulam diferentes áreas. Construir soluções complexas para problemas perversos é um dos grandes desafios dos Estados nacionais ao redor do mundo. E tem sido um problema ainda mais exacerbado frente à pandemia.
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Além das questões óbvias relativas à saúde, a pandemia exige soluções que articulem diversas áreas, como assistência social (para cuidar das populações mais vulneráveis); economia (para desenvolver iniciativas de mitigação dos efeitos econômicos); educação (para pensar estratégias de ensino à distância durante o isolamento); de transporte (para pensar mobilidade urbana em momentos de isolamento). Mas também exige articulações de áreas meio, como insumos, compras e logística de distribuição de equipamentos de proteção individual, de insumos hospitalares e mesmo de programas de distribuição de renda emergencial. Quanto mais restritas as soluções apresentadas para enfrentar a crise, menor a chance de conseguir mitigar seus múltiplos efeitos e consequências. E o contrário também é verdadeiro. Problemas complexos exigem soluções complexas que, por sua vez, passam pela construção de sistemas de coordenação inter e intra governamental.
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Uma das soluções voltadas à coordenação que têm sido utilizadas nacional e internacionalmente é a constituição dos chamados gabinetes ou comitês de crise. Esses gabinetes são estruturas temporárias criadas para enfrentar crises de forma emergencial e integradas. Eles se constituem em espaços de tomada rápida de decisão do qual participam diferentes atores responsáveis pela formulação e implementação das soluções. Podem envolver atores de várias secretarias, mas também podem envolver poder executivo, legislativo e judiciário; podem envolver atores de fora dos governos (sociedade civil, empresários) ou de outros entes federativos (estados, governo federal).
As experiências de gabinete de crise têm se multiplicado desde que a pandemia começou. No entanto, embora elas se multipliquem, a simples existência de um gabinete de crise não garante sua efetividade. Para que ele consiga enfrentar os problemas perversos de forma rápida e integrada, é preciso levar em consideração um conjunto de elementos e práticas. Recentemente, o IPEA lançou um documento mapeando algumas dessas recomendações, inspirados principalmente na literatura internacional sobre coordenação (veja o documento). Aqui completamos a lista de recomendações considerando as experiências já em curso no Brasil.
A primeira recomendação é que gabinetes de crise devem ser instâncias políticas e com legitimidade para tomada de decisão. Eles precisam estar ligados às altas hierarquias decisórias e, de preferência, no gabinete dos prefeitos ou governadores, com sua constante participação. É imprescindível que tenham comando único. A legitimidade e poder político são condições para que as decisões tomadas pelo gabinete sejam implementadas pelas demais secretarias e atores. Sem apoio político, os gabinetes têm pouca legitimidade para enfrentar as estruturas governamentais e fazer valerem suas decisões. É preciso, assim, identificar as diferentes fontes de poder político dentro de um governo específico, e trazer atores com alto nível de autorização. Secretários de governo, casa civil e planejamento, e chefes de gabinete dos prefeitos são alguns dos profissionais que frequentemente lideram estes gabinetes.
A segunda recomendação é que gabinetes de crise só funcionam bem quando têm objetivos claros e compartilhados entre seus membros. É preciso haver a construção de consensos em torno dos problemas e das soluções. Sem um entendimento compartilhado, por exemplo, da importância de práticas como isolamento ou lockdown, é muito difícil um gabinete conseguir implementar ações. Um catalisador de construção de consensos pode ser a presença de figuras menos políticas como especialistas em áreas específicas, que tenham autoridade argumentativa e embasamento em dados e teorias relevantes. Isso vem acontecendo em alguns municípios que não tinham pessoal especializado na gestão e convidaram profissionais da ponta experientes para contribuir. Não menos importante, a construção de consensos também pode ser otimizada pela atuação de subgrupos e grupos de trabalho temáticos, que maturam e organizam as propostas antes da exposição ao comitê de crise em si.
Os gabinetes precisam funcionar com base em informações rápidas e confiáveis. É preciso construir uma base de dados e indicadores confiáveis, alimentados com rapidez, e que serão a base informacional comum a todos os membros do Gabinete.
O gabinete deve ter consenso sobre qual curva epidemiológica está sendo utilizada e ter pactuados os indicadores que serão analisados para a tomada de decisão. Diversos municípios e estados brasileiros estão apostando na construção de dashboards (paineis de monitoramento de indicadores) para acompanhar os efeitos da crise em tempo real, o que, por sua vez, tem ajudado a qualificar a coleta e unificar bases de dados. Os efeitos benéficos disso tendem a se perpetuar no pós-crise.
Outra recomendação é que os gabinetes incorporem uma pluralidade de atores de diferentes setores estatais, sociais e políticos. Um dos grandes problemas nos gabinetes constituídos atualmente é considerar apenas a área de saúde e suas correlatas, sem envolver atores de áreas que são muito afetadas pela crise – como assistência social, segurança e educação, por exemplo. Ao não envolver uma pluralidade de atores, os gabinetes correm risco de construírem soluções parciais, que não resolvem os problemas de forma efetiva e integral e que podem, inclusive, gerar conflitos futuros para sua implementação. Além disso, o envolvimento de outros atores políticos – como judiciário e legislativo – é central para aprovação rápida das medidas e com o devido respaldo legal e político. Por fim, envolvimento de atores da sociedade e do mercado também é central para construir consenso e apoio às decisões tomadas. Se, por exemplo, a malha de transportes de um município é um determinante importante da disseminação da pandemia, é fundamental que a pasta encarregada da mobilidade urbana tenha um assento no gabinete.
Além dos setores negativamente impactados pela crise, vale envolver também aqueles que estão a pleno vapor, como a agricultura e outros envolvidos no abastecimento da população. A presença desses atores pode catalisar discussões de fortalecimento das cadeias de distribuição e geração de renda, contribuindo para a mitigação dos efeitos econômicos.
Na medida em que envolve diferentes atores, é imprescindível que os gabinetes definam com clareza os diferentes papéis e os fluxos de informação e decisão. Quem cuida do quem; quem responde por que dados; quem alimenta quais informações; quem implementa que ações; quais os fluxos decisórios são algumas das definições que devem constar no desenho dos gabinetes de crise.
Outro elemento central para os gabinetes de crise é o papel das lideranças. O exercício da liderança deve ampliar o espaço de mudanças: o continuum de ações que o gabinete consegue fazer. Para tal, primeiro é necessário criar uma comunicação fluida dos problemas e más notícias: culturas organizacionais demasiado punitivas e hierárquicas irão desencorajar os atores a comunicarem os erros que, se não consertados na hora certa, criarão uma resposta ineficiente à pandemia. Segundo, o gabinete de crise deve ter um nível de conflito nem muito baixo, onde os atores evitam a resolução de problemas e surgimento de contradições, nem muito alto, onde a dinâmica do conflito se sobrepõe ao reconhecimento dos desafios e busca de soluções. Terceiro, a liderança não pode ser confundida com a autoridade. Se a autoridade deve ter uma cadeia de comando clara centralizada em um ator específico, a liderança é múltipla e surge de diferentes naturezas e perspectivas: uns terão a função de conectar atores, outros de implementar políticas, outros de buscar autorização para a realização de medidas, e outros buscarão a conciliação com setores resistentes às ações necessárias.
Por fim, no caso específico desta pandemia, os gabinetes de crise devem ter um cuidado especial com a relação com a sociedade e a construção de informações rápidas, transparentes, assertivas e acessíveis. Isso porque as medidas mais importantes de mitigação da dimensão de saúde desta crise são relacionadas a mudanças de comportamento. Dessa forma, é imprescindível lançar mão de estratégias de comunicação que funcionem e sejam adaptadas para todos os públicos – afinal, tanto as medidas de controle quanto as externalidades dessa pandemia são democráticas e afetam e exigem a contribuição de todos, sem exceção.
* Gabriela Lotta é professora de Administração Pública da Fundação Getulio Vargas, coordenadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB/FGV-SP) e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM).
Arthur Aguillar e Helyn Thami são pesquisadores do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps).
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