Desde 1º de junho de 2018, o pagamento mínimo da fatura de cartão de crédito, anteriormente em 15%, passou a ser estabelecido pelos bancos. Essa definição foi adotada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) buscando, entre outros objetivos, a redução dos níveis de inadimplência.
Ocorre que vários analistas econômicos identificam um efeito alternativo altamente perverso para a medida fixada pelo CMN. Em tese, seria viável rolar 100% ou algo bem próximo do valor integral da fatura. Deve ser levado em conta, nos cenários traçados, o perfil do brasileiro endividado e preso na “via crucis” dos elevadíssimos juros praticados pelo mercado financeiro.
Esse debate é a “ponta do iceberg” de um problema gigantesco pouquíssimo enfrentado quando se faz a análise dos aspectos mais significativos da realidade socioeconômica brasileira. Refiro-me ao tamanho do endividamento da sociedade (famílias e empresas) e ao comprometimento da renda das famílias com essas dívidas.
Recentemente, o assunto ganhou destaque de uma forma inusitada. Ciro Gomes, candidato à Presidente da República, de um jeito um tanto descuidado, indicou que seu governo retiraria mais de 60 milhões de brasileiros dos registros do SPC (Sistema de Proteção do Crédito). Sem uma explicação detalhada e convincente, ao menos no primeiro debate eleitoral entre os presidenciáveis, a proposição foi vista como uma promessa eleitoral mirabolante.
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Certos dados demonstram a magnitude e a perversidade do problema. Vejamos alguns dos mais relevantes:
a) ao final de 2017, 62% das famílias brasileiras estavam endividadas;
b) 77% das famílias endividadas tinham o cartão de crédito como principal forma de contração de dívidas;
c) as famílias brasileiras comprometem, em crédito imobiliário e aquele voltado para o consumo, quase 25% da principal forma de contração de dívidas;
d) segundo informe do Banco Central (Estatísticas Monetárias e de Crédito), o saldo das operações de crédito do sistema financeiro, incluindo recursos livres e direcionados, atingiu R$ 3,2 trilhões (46,7% do PIB), em setembro de 2018. Sobre esse estoque incidem juros médios de 24,4% ao ano (o equivalente na Europa é da ordem de 3% a 5%). Isso significa que a carga de juros pagos pelas pessoas físicas e jurídicas representa cerca de 750 (setecentos e cinquenta) bilhões de reais por ano. Tratam-se dos juros extraídos, não do volume de empréstimos. Uma massa de recursos desse porte, direcionada ao consumo, tem enorme potencial de transformar a atividade econômica e várias dinâmicas sociais.
É importante lembrar que para além da ilusória taxa anual da Selic em torno de 7% ao ano, os juros praticados (cobrados) pelos bancos no cartão de crédito giram em torno de estratosféricos 300% ao ano. Dados apurados no mercado financeiro indicam que “no período de 19 a 25 de abril de 2018 tinha banco cobrando até 22,61% ao mês de juros, resultando em 1.053,88% ao ano”.
São várias as razões para essa aberração. Uma das mais relevantes, talvez a mais importante, seja a existência de um sistema bancário oligopolizado. Afinal, os cinco maiores bancos controlam mais de 80% do total de ativos emprestados.
Essa realidade aponta para uma das mais perversas formas de exploração socioeconômica na atualidade, justamente aquela decorrente da financeirização monumental da atividade econômica. Observe-se que a penúria de milhões de trabalhadores, principalmente em momentos de crise, contrasta flagrantemente com vistosos lucros das entidades bancárias.
Nessa linha, estudo do Dieese indica que “apesar do cenário econômico adverso enfrentado pelo país em 2017, os lucros dos bancos atingiram recordes históricos. O lucro líquido dos cinco maiores somou R$ 77,4 bilhões, montante 33,5% superior ao registrado em 2016”.
Ainda segundo a análise do Dieese, “uma rubrica que merece atenção nos balanços dos bancos é a dos impostos, na qual estão incluídos, entre outros, o Imposto de Renda (IR) e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Isso porque, em 2015, foi aprovada a Medida Provisória nº 675, convertida na Lei nº 13.1693, que eleva de 15% para 20% a alíquota da CSLL cobrada das instituições financeiras.
É interessante notar que, apesar desse aumento, houve, em 2017, queda de 38,5% no volume de despesas com impostos e contribuições pagos pelos cinco maiores bancos do país em relação a 2016, o que gerou efeito positivo sobre os lucros”.
O elevadíssimo grau de endividamento dos brasileiros, uma das facetas mais visíveis da financeirização selvagem da economia brasileira, cobra um preço perverso. O “travamento” da atividade econômica é uma consequência triste e inexorável desse estado de coisas. Afinal, os recursos que poderiam dinamizar a economia num círculo virtuoso (mais consumo, mais produção, mais emprego, mais arrecadação tributária, mais políticas públicas, mais investimento, etc.) são esterilizados como renda estática e geradora de mais desigualdade socioeconômica.
Em níveis razoáveis, como observado em países europeus, o crédito funciona como forma de dinamização do consumo de massa. Já a realidade brasileira, como destacado, passa longe, bem longe, de um mercado de crédito em níveis racionais e voltado para a ampliação contínua do mercado interno.
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