Ana Trigo *
Acompanhei recentemente uma ação da Cristolândia na rua dos Protestantes, na Santa Ifigênia, onde a cracolândia estava concentrada na ocasião. Enquanto missionários, voluntárias e voluntários conversavam com os dependentes químicos, cortavam o cabelo deles e distribuíam comida e água, um grupo de Guardas Civis Metropolitanos olhavam com desaprovação em direção à tenda de atendimento. Outro grupo formado por quatro pessoas vestindo jalecos brancos da Secretaria Municipal da Saúde também olhavam a ação de longe e não interagiram muito com as pessoas que se concentravam em torno das barraquinhas montadas para venda de isqueiros e outras traquitanas consumidas pelos usuários de drogas.
É muito comum que o trabalho de distribuição de comida ou de redução de danos realizados por grupos diversos nos territórios de uso de drogas sofram com a desaprovação de agentes públicos. Não são raras as vezes que a Guarda Civil Metropolitana tenta impedir a entrega de alimentos. Ou que a polícia dê voz de prisão a ativistas de redução de danos alegando “perturbação da ordem”. Ou ainda que um representante do Legislativo se empenhe em criminalizar o trabalho dos voluntários, postando em suas redes sociais que as ações na cracolândia “beneficiam o tráfico”. Levar um mínimo de dignidade a pessoas doentes pelo vício parece horrorizar os nobres parlamentares em questão.
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Relacionar ações junto aos dependentes químicos com a criminalidade é desviar a atenção dos que deveriam ser controlados de fato, como os traficantes de drogas. É desviar o debate para o lado apenas da criminalidade e não para as políticas públicas. Tanto é que, no dia da ação realizada pela Cristolândia, havia cerca de 30 guardas civis no entorno. E o grupo de jalecos brancos não ficou muito tempo nas proximidades do fluxo. A única ação social de fato era da instituição religiosa.
A Cristolândia é uma entidade financiada pela Junta de Missões Nacionais da Igreja Batista. Foi fundada em São Paulo, em 2009, para evangelizar e ressocializar usuários de drogas que circulavam pela cracolândia ainda instalada na Praça Júlio Prestes. A base da instituição fica a poucos metros dali, na rua Barão de Piracicaba, mas hoje tem presença em vários estados brasileiros.
Cheguei por volta das 10h daquele dia e deixei o local perto das 15h. E o que fazia mais sucesso de venda das barraquinhas não era o crack, mas sim as garrafas de Corote, aguardente barata e bastante consumida pelos dependentes químicos. O álcool é tão ou mais consumido localmente pelos usuários, mas nunca faz parte das ações antidroga do Executivo ou do Legislativo. Tanto que, naquele dia, a venda de crack não parecia seguir a concorrência da cachaça. Tudo acontecendo ao lado dos guardas municipais.
Paralelamente, na tenda de atendimento da Cristolândia, homens e mulheres faziam fila para cortar o cabelo, pegar alimentos ou água. De tempos em tempos, os voluntários e voluntárias cantavam músicas de louvor prontamente acompanhadas pelos frequentadores da cracolândia. A aproximação dos dependentes químicos com o repertório gospel é nítida. Em todas as vezes que estive nos territórios de uso, sempre encontrei missionários, voluntários, religiosos católicos ou evangélicos nas redondezas ou mesmo no fluxo, conversando com os dependentes químicos, oferecendo algum tipo de ajuda. É uma presença frequente, que influencia o linguajar e o gosto musical dos dependentes químicos.
A Cristolândia talvez seja o maior desses grupos. Enquanto a ação corria, muitos se aproximavam e pediam orações. Retribuíam o fervor das palavras dos missionários com promessas de deixar de usar drogas, de procurar a família ou de reorganizar suas vidas. “Eu vou me curar!”, “eu vou me libertar!”, “eu vou largar as drogas!” eram as frases mais ouvidas e sempre seguidas de “em nome de Jesus!”.
A interação entre os dependentes químicos e os missionários é visível. O que mostra que são os grupos religiosos que conseguem entrar naquele ambiente e interagir com seu público. Interação prontamente percebida pelo poder público, que tira proveito de um trabalho que até tem um pouco de assistência social, mas que no fundo é de evangelização pura e simples. Quando há interesse e possibilidade de controle, os governos, principalmente o do Estado de São Paulo com o Programa Recomeço, incorpora a ação religiosa e inclui o proselitismo na política de atendimento aos dependentes químicos.
Como disse o teólogo Rubem Alves, a religião torna o fiel mais forte “para suportar os sofrimentos da existência”. E é na hora da dor, do sofrimento e da desesperança que “recorre-se às orações, às romarias, aos santuários, aos carismáticos, aos padres, aos magos”. É o atendimento que a população usuária de drogas de São Paulo receberá. Mesmo dentro dos equipamentos públicos, a ajuda sempre vem “em nome de Jesus!”.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica da cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte dos grupos de pesquisa do LAR (Laboratório de Antropologia da Religião – Unicamp) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo – PUC-SP). Também integra o coletivo Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero de São Paulo.