Sempre digo que democracia e direitos guardam complementaridade: não existe democracia sem direitos, assim como não existem direitos sem o chão fértil da democracia. Quando olhamos para as transformações históricas da temática da infância e da adolescência no Brasil, vemos o quanto avançamos desde a redemocratização.
A força dos movimentos sociais e das organizações de defesa dos direitos das crianças e adolescentes na década de 1980, resultou no reconhecimento dessa população como sujeito de direitos na Constituição Federal de 1988.
A Constituição Cidadã estabelece um outro olhar e um novo marco civilizatório. Concretiza no seu artigo 227, que crianças e adolescentes devem ser considerados prioridade absoluta para a família, a sociedade e o Estado. A Constituição traz a Doutrina da Proteção Integral da Organização das Nações Unidas e consolida um avanço da normativa internacional para a população infanto-juvenil brasileira. É esse artigo que assegura os direitos fundamentais de crianças e adolescentes.
Foi num contexto de liberdades e avanços democráticos que o Brasil tornou-se um dos primeiros países do mundo a criar, em 1990, uma legislação específica em resposta à adesão do país à Convenção sobre os Direitos da Criança (1989). Estamos falando do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completa 30 anos e é um marco na proteção dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes no Brasil e no mundo, por assegurar a proteção integral e criar mecanismos para a efetivação de direitos e políticas públicas para essa parcela da população.
O ECA traz uma visão nova sobre a questão da infância e da adolescência, ao estabelecer uma importante concepção: a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento. O Estatuto rompe com o paradigma do menorismo para o da afirmação de direitos, do punitivismo para a socioeducação. Define como direitos fundamentais: o direito à vida e à saúde; à liberdade, ao respeito e à dignidade; à convivência familiar e comunitária; à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer; à profissionalização e à proteção no trabalho, dentre outros.
Estabelece, ainda, todo um sistema de garantia de direitos que articula um conjunto de instrumentos que devem atuar no sentido de efetivar os direitos na lógica da proteção integral. Dentre esses instrumentos destaco o Conselho Tutelar. Tive a honra de ser relatora da lei que que garantiu direitos trabalhistas básicos aos conselheiros tutelares, aumentou os mandatos para quatro anos e unificou as eleições em todo o País. Compreendo que fortalecer os Conselhos e todo o sistema de garantia de direitos é salvaguardar crianças e adolescentes de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Foram inúmeras as conquistas cidadãs e civilizatórias que tivemos ao longo dos últimos 30 anos, quando serviços foram criados e ampliados. É inegável que o Brasil avançou na promoção e proteção de direitos, o que se expressa na melhoria de indicadores importantes, a exemplo, da redução da pobreza e do acesso às políticas públicas de educação e saúde.
De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2017, o percentual de crianças e adolescentes fora da escola era de 4,7%. Em 1990, ano de criação do ECA, essa taxa era de 19,6%. Verifica-se, assim, um aumento do alcance na escolarização, embora ainda tenhamos muito que avançar na busca pela sua universalização com qualidade
O acesso à saúde também teve melhorias expressivas. Segundo o levantamento, entre 1990 e 2017, a taxa de mortalidade infantil caiu de 47,1 para 13,4 mortes para cada mil nascidos vivos. Houve, ainda, uma significativa evolução na luta contra a pobreza. Em 1991, o percentual de meninos e meninas vivendo em domicílios pobres era de 70%. Em 2015, esse índice havia caído para 34%.
No entanto, ainda enfrentamos uma série de desafios para que o ECA seja integralmente implementado. Um deles é exatamente a disputa de significado. Fundamentalistas punitivistas trabalham diuturnamente no parlamento e na sociedade para desconstruir o Estatuto e as medidas de socioeducação, com o único objetivo de endurecer as punições para crianças e adolescentes em conflito com a lei.
Via de regra os punitivistas ignoram toda a lógica de proteção integral do ECA. Não lutam pela efetivação de direitos, nem compreendem a mudança de paradigma da punição para a prevenção, proteção e reparação dos direitos violados. Para eles, a solução mágica para o complexo fenômeno da violência em nosso país são as grades.
O Brasil ainda convive com um grave quadro de vulnerabilidade social, principalmente, de crianças pobres, negras, indígenas e quilombolas. Sabemos que crianças e adolescentes são muito mais vítimas que algozes da violência e alguns números são bastante reveladores de que direitos básicos de crianças e adolescentes seguem sendo desrespeitados. Temos quase 2 milhões de crianças e adolescentes fora da escola e 9 mil vítimas por armas de fogo. A cada hora quatro meninas de até 13 anos são estupradas em nosso país. 2,4 milhões de crianças e adolescentes seguem exercendo o trabalho infantil, muitas vezes naturalizado quando se trata de crianças pobres e negras.
Associado a tudo isso, temos vivido nos últimos anos um processo acelerado de deterioração do ambiente democrático no Brasil que vai se refletir em retrocessos sociais e na retirada de direitos. Todos os avanços conquistados ao longo das últimas décadas estão ameaçados e uma das maiores dificuldades para a efetivação do ECA e dos direitos de crianças e adolescentes é justamente assegurar recursos suficientes para as políticas públicas.
Estamos sob a égide de uma emenda constitucional (EC 95) que congelou todos os gastos com políticas públicas pelos próximos 20 anos, a qual tem sido responsável pela piora dos indicadores de qualidade de vida, aumento da mortalidade infantil, retorno da fome e do aprofundamento das desigualdades.
É impossível falar em prioridade absoluta quando nos últimos três anos (2016 a 2019) nenhum orçamento autorizado para políticas públicas destinadas às crianças e adolescentes foi integralmente aplicado.
Por isso, sou autora de um projeto de lei (PLP 46/2015) que altera a Lei de Responsabilidade Fiscal para que sejam estabelecidas a obrigatoriedade de um plano de metas destinadas às crianças e adolescentes. Os gestores precisam prestar contas aos respectivos poderes legislativos e aqueles que não cumprirem objetivos que assegurem a efetividade dos direitos e a proteção especial terão que responder por crime de responsabilidade.
Num cenário de escalada do ódio e de ameaças ao Estado de Direito e à democracia, são inúmeros os desafios para que a letra da lei se efetive na realidade. Mas seguimos em frente, porque acreditamos que assegurar direitos de crianças e adolescentes não é uma escolha, mas um dever do Estado, da família e da sociedade.
Continua absolutamente atual a reflexão de Herbert de Souza, o Betinho, quando diz que “se não vejo na criança uma criança, é porque alguém a violentou antes e o que vejo é o que sobrou de tudo que lhe foi tirado. Essa que vejo na rua sem pai, sem mãe, sem casa, cama e comida, essa que vive a solidão das noites sem gente por perto, é um grito, é um espanto. Diante dela, o mundo deveria parar para começar um novo encontro, porque a criança é o princípio sem fim e o seu fim é o fim de todos nós”.
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