O Superior Tribunal de Justiça, através da lúcida voz da ministra Nancy Andrighi, disse que: “Ao afirmar que a recorrida não ‘mereceria’ ser estuprada, atribui-se ao crime a qualidade de prêmio, de benefício à vítima, em total arrepio do que prevê o ordenamento jurídico em vigor. Ao mesmo tempo, reduz a pessoa da recorrida à mera coisa, objeto, que se submete à avaliação do ofensor se presta ou não à satisfação de sua lascívia violenta. O “não merece ser estuprada” constitui uma expressão vil que menospreza de modo atroz a dignidade de qualquer mulher”. Referia-se ela ao deputado federal Jair Bolsonaro, condenando-o pela violenta, fria e premeditada agressão à deputada federal Maria do Rosário.
O Poder Judiciário, com esta resposta, pretendeu escrever nos anais do tempo que a violência contra a mulher, a apologia ao estupro ou que o homem fora aquinhoado com o “merecedor direito de escolher a quem violentar” não mais poderiam ser tolerados no Brasil contemporâneo. Não se estava em debate, portando, o valor econômico em que o parlamentar fora condenado, até porque este será objeto de doação, como sempre anunciou a deputada Maria do Rosário e consta expressamente da própria ação.
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O que se fixava, ali, era a mensagem de que ninguém, por mais poderoso que seja, tem imunidade para “livre agredir” ou ser de “franco atirador” de petardos da virulência que estimulam mais violência contra as mulheres. E sobre esta questão esclareceu Nancy Andrighi: “Na hipótese dos autos, a ofensa perpetrada pelo recorrente, segundo a qual a recorrida não mereceria ser vítima de estupro, em razão de seus dotes físicos e intelectual, não guarda nenhuma relação com o mandato legislativo do recorrente”.
Mas não pretendo, aqui, tratar da condenação do parlamentar agressor, até porque esta tarefa pertence ao Poder Judiciário. Tampouco vou discutir o equívoco involuntário das pessoas que reproduzem como verdade que houve um pequeno entrevero parlamentar, em que ambos se excederam. É que este fato não é verdadeiro, pois nunca o deputado Jair Bolsonaro fora chamado de “estuprador” pela deputada Maria do Rosário, como comprovado nos autos do processo. Nem no dia em que, fora agredida da tribuna parlamentar, nem, tampouco, no vídeo divulgado pelo próprio parlamentar, em que registra fato ocorrido 11 anos antes. Aliás, o vídeo que completara mais de uma década, apenas comprova que a agressão fora premeditada, inclusive na escolha da cruel palavra que atinge as incontáveis mulheres vitimas de estupro: “Ela merecia”.
A reflexão que trago decorre da repetição, divulgação, incentivo e apoio ao gesto agressivo praticado contra a mulher batizada Maria do Rosário. Nas redes sociais, nos debates etílicos ou em ambientes regados pelo moralismo machista, encontram-se milhares de pessoas afirmando que a deputada, por dela não se gostar, por discordar de sua atuação ou do partido político em que é filiada, merecia ser estuprada, violentada ou até mesmo assassinada.Nas vozes estimuladoras da prática que faz uma mulher ser violentada a cada 11 minutos no Brasil, escutam-se os ruídos raivosos de milhares de mulheres. E nos gritos que procuram “justificar” o crime que ceifa a vida, física e psíquica, de infinitas crianças e adolescentes brasileiras, ouve-se vozeares de mães. E assim, Marias, Penhas, Anas, Fernandas, Adrianas, Josefas e milhões de mulheres são, diariamente, acusadas do crime de merecimento.
Este é o rosário que faz do machismo um adversário de difícil combate, até porque fecundado, gerado e criado por homens e mulheres que acreditam na superioridade natural do gênero masculino. Este é o rosário que, como série que teima em não se interromper, frequenta lares, locais de trabalho, ônibus, vans, igrejas, parlamentos, sindicatos e infinitos cantos e recantos que não cantam o respeito à pessoa humana nascida mulher. Este é o rosário que transfere para a mulher a merecida culpa de ter sido assassinada, estuprada, violentada, humilhada ou subjugada pelo machismo que ousa se dizer vítima inocente dos costumes. Este é o rosário que fez o Brasil ser forçado, por sua confessa ação-omissiva no combate à violência contra a mulher, a aprovar a Lei Maria da Penha, apontando que “tapa de desamor dói e dá cadeia”.
Eis porque a decisão de Rosário, de processar o seu contumaz agressor, mesmo sendo agredida pelo violento séquito que o segue, é de importância vital para reafirmar que o grave crime de estupro não pode ser tolerado, estimulado por palavras ou reconhecido como direito natural do homem. O seu corajoso gesto, não desistindo da árdua luta, mesmo quando agredida pelas mulheres e mães que diariamente defende em sua atividade parlamentar, fez-me lembrar de Harriet Tubman, a primeira mulher a liderar uma expedição armada na Guerra de Secessão, quando comandou mais de setecentos soldados na abolicionista e humanitária estadunidense. É dela a frase como registro do rosário que se recusa a rezar o machismo: Libertei milhares de escravos. Poderia ter libertado outros tantos milhares, se eles soubessem que eram escravos.
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