Maciel de Aguiar*
Os conflitos lindeiros entre as províncias do Espírito Santo e da Bahia arrastaram-se desde 15 de setembro de 1764. Nesta data, Thomé Couceiro de Abreu transpôs o limite Sul da Capitania de Porto Seguro, no Rio Mucuri – estabelecidos pela Coroa Portuguesa com a demarcação das capitanias hereditárias. Ele estendeu o território até o Rio Doce. Este processo teve como objetivo elevar a Aldeia de São Matheus à categoria de vila com o nome de Vila Nova do Rio de Sam Matheus.
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O ato audacioso e aventureiro se baseou na Carta Régia de 14 de abril de 1755. Nela, o Marquês de Pombal outorga ao ouvidor-geral de Porto Seguro o direito de fundar vilas, estabelecer relações comerciais com outras províncias e, sobretudo, impedir que aventureiros tivessem acesso às nascentes, dentre elas, a do lendário Rio Cricaré. Thomé Couceiro desfrutava de grande prestígio junto à Corte e sua ação também visava a proteger as minas de ouro das Gerais.
Durante décadas, a próspera Vila do Cricaré, que o gentio chamava de Kiri-Kerê, pertenceu a Porto Seguro. Era uma imensa gleba onde muitos fazendeiros procedentes da região do Recôncavo implantaram um dos mais poderosos sistemas escravocratas que existiram no Brasil. E transformaram o Porto de São Mateus num grande centro de comércio de negros para mão-de-obra escrava do interior do país. Isso, graças às correntes marítimas, que aceleravam a travessia dos navios negreiros da África ao Brasil.
Com a Independência do Brasil, a Vila de Sam Matheus, dominada pelas tropas portuguesas, se recusou a celebrar o feito de Dom Pedro I às margens do Ipiranga, naquele 7 de setembro de
Em retribuição, José Bonifácio de Andrada e Silva baixou aviso reconhecendo o território como espírito-santense, contrariando as autoridades locais, em permanente ligação com a cidade de São Salvador.
Quando a Vila de Sam Mateus foi elevada à categoria de cidade, dizia-se que os seus moradores viviam na metrópole e os de Vitória, na província. Nos últimos quartéis do século XIX, as desavenças políticas entre os habitantes do Cricaré e os da capital capixaba davam a dimensão das disputas territoriais. Com poder econômico e social superior, os mateenses-baianos estabeleceram relações comerciais com outros centros da costa brasileira, o que incomodava a quem chamavam de moradores da “roça de milho”.
O comércio de gente fez a fortuna das famílias coroadas que lá habitavam, sobretudo após a Lei Eusébio de Queirós, em 1850, proibir o tráfico de negros da África ao Brasil – quando 16 fazendas de reprodução foram implantadas na região do Sapé do Norte. Este novo “negócio” prosperou durante 21 anos. Em 28 de setembro de
Logo no início do século XX, o comércio marítimo entra em declínio e a região, que havia produzido vários governadores e outras autoridades – Constante Sodré, Antônio Aguirre, Graciano Neves, Jones dos Santos Neves, Desembargador Santos Neves e Ceciliano Abel de Almeida –, vê seu imponente porto perder importância econômica. Então, as poderosas famílias se mudam para a capital capixaba. Hoje, muitas emprestam nomes de seus descendentes a ruas em Vitória, sobretudo na Praia do Canto. Algumas jamais voltaram ao Cricaré. O casario abandonado por elas foi perdendo valor e acabou sendo ocupado por meretrizes, que os transformavam em luxuosos cabarés.
Em 1926, Bahia e Espírito Santo estabeleceram um acordo, que vinha sendo renovado automaticamente, com nítidas desvantagens para o território espírito-santense. A covarde capitulação deu-se com o Governo do Espírito Santo aceitando uma linha divisória imaginária, abaixo
Ninguém pagava imposto e o bandidismo corria solto.
A Constituição de 1988 estabeleceu um prazo para um acordo definitivo. Caso contrário, o Supremo Tribunal Federal decidiria a questão. Como o Palácio Anchieta não demonstrava interesse na defesa do território em questão, as Câmaras de Vereadores de São Mateus, Pedro Canário e Conceição da Barra fizeram várias seções conjuntas para defender a soberania capixaba em função da inércia da Procuradoria Geral do Estado do Espírito Santo, a PGE. Como não tinham legitimidade, o caso foi mesmo parar no STF.
Há de se destacar a atuação de muitos que lutaram por esta nobre causa, como Eugênio Cunha, Eduardo Durão Cunha e Nyder Barbosa de Meneses. Este, inclusive, provocou inúmeras matérias publicadas
Desde o Império, o capixaba sofre de complexo de “bicho do mato”. Conta-se que para evitar o saque ao ouro, o Imperador Pedro II baixou um decreto proibindo a abertura de estradas em nosso território, com o objetivo de proteger as Minas Gerais. Vivemos sob a ameaça dessa proibição, mas o documento ninguém viu de se pegar. No entanto, graças a ele, nossas exuberantes matas foram protegidas. Após a Revolução de 30, fomos à forra. Abrimos estradas e destruímos a natureza: devastamos tudo até o Sul da Bahia.
Em 2003, foi eleito um jovem governador com a promessa de transformar o Estado. O propósito era “reconstruir a imagem do Espírito Santo” – abalada por uma devastadora campanha de desmoralização do governo anterior – e ele anunciou “Um Novo Espírito Santo”. Mas, ao contrário do que propôs, instalou o “Guardião” para ouvir as conversas alheias. Fez ressurgir o Estado policialesco, criou a “imprensa amiga”, estabeleceu a perseguição como gestão e a falácia como prática. Parte do necessário e imprescindível Ministério Público se converteu em polícia política e lhe devota fidelidade canina, e ao preço de 4 milhões de reais, pago em dia de eleição no órgão.
Assim, é celebrado como “Imperador”. E com base em pesquisas suspeitíssimas, com elevados índices de aprovação, bombardeia a opinião pública maciçamente pela mídia com a imagem de “honestidade”, “eficiência” e, sobretudo, de “combate ao crime organizado”. Amordaçou a muitos artistas, jornalistas e outros intelectuais, além de disseminar o medo entre políticos e autoridades. Para abafar a incompetência na saúde, na educação e na segurança – em permanente calamidade pública – escolhe sempre alguém para “Geni”. E fica de longe dando gargalhadas. Está sempre aprontando uma traquinagem contra os raros desafetos. Em público é educado, afável e atencioso. Um gentleman.
Disse que vai ficar no poder até 2025. E quem ousa duvidar? Na maioria dos municípios capixabas os políticos se digladiam na disputa por uma foto a seu lado. A fidelidade partidária e as propostas perderam importância. Todos querem seu “apoio”. Nestas eleições municipais, ele vai marcar território com seus cães ferozes. O vice-governador já está rosnando pela imprensa contra os que se arriscam a não mijar em cada poste a seu mando. Como a Bahia nos dominou por muito tempo e pilhou parte de nosso território, ele se transformou, por simbiose, num legítimo herdeiro político de Antonio Carlos Magalhães, o “Toninho Malvadeza”. E com uma expressiva vantagem: tem a Cepemar.
(“Paulinho Malvadeza” continua na próxima semana com cenas maquiavélicas e surpreendentes de “Dom PH I” e único).
*Maciel de Aguiar é escritor, ex-secretário de Estado da Cultura do Espírito Santo e reside no Porto de São Mateus.
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