Jornalistas credenciados no Congresso no final da década de 1980 reagiram com indignação ao tomar conhecimento, pelo Congresso em Foco, de que foram monitorados pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), principal órgão de espionagem da ditadura militar (1964-1985), após a redemocratização. Para alguns deles, a revelação feita por este site nas últimas quinta (25) e sexta-feira (26) foi uma surpresa. Para outros, foi a confirmação de uma velha suspeita. Para todos, no entanto, uma violação inaceitável do livre exercício do jornalismo em uma democracia.
Relatório produzido em 1989 pelo SNI reúne uma lista com os nomes de mais de 300 jornalistas credenciados (veja os nomes) para a cobertura política em Brasília entre os anos de 1987 e 1988, ou seja, durante a realização da Assembleia Nacional Constituinte. Além disso, conforme registramos, conversas de bastidores entre políticos e profissionais da imprensa eram relatadas em documentos do serviço de informações. Quebrar a confidencialidade da fonte, antecipar reportagens e revelar estratégias de políticos da oposição eram alguns dos objetivos da espionagem feita nos anos seguintes à ditadura. Os documentos foram obtidos pelo Congresso em Foco no Arquivo Nacional.
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Máquina de espionagem
A lista dos jornalistas credenciados reunia profissionais dos mais diferentes perfis ideológicos. O texto introdutório do relatório, no entanto, sustenta que “as esquerdas controlavam as comunicações” no Legislativo e no Executivo.
“Em pleno 1989, me surpreende o SNI fazer relatórios sobre jornalistas no Congresso”, afirma o jornalista Hélio Doyle, ex-presidente da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) e do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal. Ele conta que não tinha conhecimento desse tipo de atividade no período pós-ditadura.
Ainda sim, Hélio avalia que os documentos estavam longe de traduzir a verdade ou terem peso. “Eles carimbavam todo mundo como de esquerda, mas você poderia substituir o termo simplesmente por progressista ou anti-ditadura”, observa. Para o jornalista e professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB), a elaboração de relatórios era uma tarefa que estava sujeita a muitos erros, justamente pelo fato de que seus autores não precisavam prestar contas e confirmar as informações.
“Os caras queriam manter o emprego e tinham que fazer relatórios, mesmo tendo muita coisa errada”, complementa. O jornalista atribui esses erros primeiramente à obrigação de apresentar resultados e, posteriormente, à incompetência dos agentes do SNI.
Mesmo com os eventuais erros advindos do monitoramento do órgão após a ditadura militar, o jornalista David Renault avalia que a manutenção das atividades do SNI naquela época confirmam que o governo José Sarney não conseguiu se desvincular totalmente da ditadura. “Significa que, na prática, o primeiro governo civil não conseguiu desmontar a máquina montada cuidadosamente durante o regime militar, para obter informações de qualquer forma e a qualquer custo”, considera o também professor de Comunicação Social da UnB. O SNI só veio a ser extinto em 1990, no governo Fernando Collor. Mas, como mostrou o Congresso em Foco, continuou a produzir relatórios mesmo após a assinatura de sua extinção.
Sob vigilância
Ideologicamente identificada com a direita, a ex-senadora Ana Amélia (PSD-RS) ainda exercia o jornalismo quando teve o seu nome na lista levantada pelo SNI. Diretora do diário gaúcho Zero Hora, na época, ela afirma que vivia com a sensação de que era vigiada, mesmo após a redemocratização.
“Naturalmente, com a censura sobre os conteúdos produzidos por nós, jornalistas credenciados no Palácio do Planalto, havia sempre a suspeita que estivéssemos sob a mira de ‘censores’ ou dos responsáveis pelo monitoramento, bisbilhotando nosso trabalho”, pontua.
Não é possível saber se o SNI se valia de informações de jornalistas informantes ou se mantinha gente dos seus quadros nos comitês de imprensa. Ana Amélia diz que não nutria suspeita de colegas, mas apenas a certeza de que estava na mira dos órgãos de investigação como o SNI.
David Renault diz que tinha suspeitas sobre alguns colegas na época, por suas posturas, comportamentos e, até, pela busca de informações e opiniões muito específicas de determinados profissionais da imprensa.
Sem censura
Também na lista relatada pelo SNI, o jornalista Paulo José Cunha ressalta que a espionagem por órgão oficial continua até hoje. “Nunca, na verdade, a gente se sentiu trabalhando sem imaginar que havia uma espionagem do nosso trabalho. Não que se soubesse de algo concreto, mas havia, sim, uma desconfiança, até porque os órgãos de monitoramento continuaram existindo. Ora, se até hoje se descobre que a Abin (Agência Brasileira de Informações, sucessora do SNI) monitora parlamentares, ministros e jornalistas, por que não faria isso logo depois de instituída a democratização?”
Colunista deste site, Paulo José faz referência a investigações em andamento que apontam para a existência de um esquema ilegal de monitoramento feito no governo Bolsonaro pela Abin.
Hoje professor da UnB, ele ressalta que, apesar de o SNI continuar a operar após a ditadura, ao menos censura não havia mais no país naquele momento. “É preciso lembrar que até os nossos telefones de casa eram monitorados. Por várias vezes a gente ouvia ruídos estranhos durante as ligações e os técnicos nos asseguravam que só podia ser alguma intromissão , porque não havia motivo para tais ruídos. Só que, na prática, devo reconhecer que nunca esse monitoramento resultou em qualquer ato de censura. Mas, que a gente se sentia espionado, sentia”, lembra.
Araponga
Para o atual diretor da sucursal em Brasília do Correio da Manhã e colunista do Congresso em Foco, Rudolfo Lago, saber que jornalistas ainda foram monitorados mesmo depois do fim da ditadura por tanto tempo não chega a surpreender. Rudolfo cita uma reportagem que fez alguns anos atrás para a Revista Congresso em Foco a respeito de José Alves Firmino, araponga do Exército que monitorou políticos mesmo após a redemocratização, entre eles o atual presidente Lula e o ex-presidente Jair Bolsonaro.
“O que emerge do relato sobre o monitoramento dos jornalistas é o que já parecia acontecer com o que contou Firmino. Ao final da ditadura, os relatos dos arapongas eram meio inócuos. Em um clima de liberdade e transparência, os relatórios não avançavam muito do que qualquer veículo de imprensa noticiaria”, explica Rudolfo, que foi diretor do Congresso em Foco Análise, serviço para assinantes do Congresso em Foco.
O jornalista, que aparece na lista do SNI credenciado entre 1987 e 1988 no Congresso, acredita que os arapongas tinham muito pouco a acrescentar. “O poder de Ulysses Guimarães no governo Sarney, por exemplo, era fato notório, presente em qualquer noticiário. E o incômodo de Sarney com isso, também. O que sobra são exageros e opiniões que não caberiam numa notícia: ‘ardiloso’, ‘quer instaurar o parlamentarismo’, etc.”, diz, ao citar algumas das expressões utilizadas nos relatórios do SNI a respeito dos bastidores políticos obtidos a partir de relatos de “jornalistas credenciados”.
“Especialmente emerge o espanto com esse tipo de atividade subterrânea. Que talvez explique por que, quase 40 anos depois do fim da ditadura, os militares ainda pareçam produzir tanto medo e a sombra de um golpe ainda nos assombre a todo momento”, observa o jornalista.
Informante
Presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e da Federação Internacional de Jornalistas (FIJ) entre o final dos anos 80 e início da década de 90, Armando Rollemberg diz que nunca se sentiu espionado no período pós-redemocratização. “Pelos relatórios, ficamos com a impressão de que poderia ser um jornalista informante”, considera. Para ele, uma coisa é certa: “Os comitês de imprensa do Congresso e do Planalto não eram um um antro de esquerda. No Planalto, inclusive, havia um crivo. Se tivesse militância, não tinha credencial”.
Também na lista dos jornalistas credenciados levantada pelo SNI, Bertha Pellegrino diz que ficou indignada ao descobrir que teve o seu nome em poder do serviço de informações da ditadura.
“Ao longo dos meus 40 anos como jornalista, sempre prezei pela isenção, honestidade, ética, comprometimento e, nesse período, não foi diferente. Descobrir, dessa forma, que tive minha vida profissional – e quem sabe até pessoal – vigiada por agentes do Estado me assusta. A liberdade jornalística é um pilar fundamental da democracia e qualquer tentativa que busque ou tenha buscado sufocá-la é inaceitável”, disse em nota enviada ao Congresso em Foco. Bertha foi setorista de política da TV Manchete no Planalto e no Congresso e diretora da TV Globo MT em Brasília entre 1985 e 1990.
Meio e fim
As apurações dos jornalistas credenciados eram usadas, na prática, para revelar os bastidores políticos, aquilo que se dizia nos corredores do Congresso, mas que nem sempre saía estampado nas páginas dos jornais.
Um dos relatórios atribuía a “jornalistas credenciados” no Congresso a informação de que Ulysses fazia “um trabalho sorrateiro e ardiloso” – eram essas as palavras utilizadas – para desgastar o governo de Fernando Collor com o propósito de antecipar a implantação do parlamentarismo no Brasil e ascender, assim, ao posto de primeiro-ministro. O plano nunca se confirmou, nem há indícios de que o parlamentar tenha tramado dessa forma. O documento foi registrado em junho de 1990 nos arquivos do SNI, três meses após o órgão ser extinto por Collor.
O documento detalha a suposta tática e depois informa – novamente atribuindo informações a “jornalistas credenciados” – que Ulysses havia desistido da estratégia ao constatar que o plano Brasil Novo, mais conhecido como Plano Collor, de estabilização da inflação, começava a alavancar a popularidade do então presidente, deixando-o menos suscetível às investidas do Congresso.
Procurado pelo Congresso em Foco, o ex-presidente José Sarney e o porta-voz de seu governo, Fernando César Mesquita, negaram ter conhecimento da produção desse tipo de trabalho do SNI em sua gestão.
“O presidente nunca recebeu esse tipo de relatório e nem tinha conhecimento de que eram feitos. E nunca concordaria com esse tipo de absurdo. Palavras dele e minha”, respondeu Fernando César. Homem de total confiança do ex-presidente, o jornalista foi porta-voz e secretário de Imprensa de Sarney. Também procurado, Fernando Collor não se manifestou sobre o assunto.
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