|
Uma questão polêmica está dividindo o governo: a homologação da reserva Raposa Serra do Sol, com quase 1,7 milhão de hectares em Roraima, na área de fronteira com a Venezuela e a Guiana. Os militares e o ministro da Articulação Política, Aldo Rebelo, são contrários à homologação da reserva em faixa contínua. Eles não abrem mão de uma faixa de fronteira de 15 quilômetros fora da área de reserva. Já o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, defende a homologação da reserva em toda a sua extensão. “Esse é um discurso falso porque mais de 5 mil quilômetros das fronteiras brasileiras já são ocupadas por índios. A experiência histórica mostra exatamente o contrário. São os índios que habitam aquela região e são eles que denunciaram em vários momentos a presença de estrangeiros em território nacional. Esse argumento do Ministério da Articulação Política é totalmente descabido”, afirmou Saulo Feitosa, vice-presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Leia também Graças à influência do ministro Aldo Rebelo e dos três comandantes militares das Forças Armadas, o relator da Comissão Externa da Câmara sobre a reserva Raposa do Sol, Lindberg Farias (PT-RJ), elaborou um relatório que deixa a faixa de fronteira fora da reserva. Para o Cimi, o Ministério da Defesa deveria lançar um programa para incluir “O Exército pode estabelecer um diálogo com os índios. Nós não vemos uma contradição nisso. Se você pega a população rural de Roraima, ela é de apenas 77 mil habitantes. Desses 77 mil, 40 mil são índios. Quem é que vai poder proteger a fronteira brasileira se não os índios? Esses 40 mil são os que estão na fronteira”, disse. Congresso em Foco – Há uma troca de acusações entre os governos federal e estadual sobre o massacre de garimpeiros pelos cintas-largas em Rondônia. Quem é o culpado afinal? Saulo Feitosa – A Constituição Federal é bem clara. A competência para atender e assistir as comunidades indígenas é do Poder Executivo, da União. Lamentavelmente, esse caso cinta-larga se arrasta há muitos anos. É um povo que sofreu um massacre em 1963, o massacre do Paralelo 11. De 1963 a 2003, eles tiveram uma redução da população de 74% e passaram por vários tipos de invasão – seringalistas, madeireiras e, agora, os garimpeiros. "De 1963 a 2003, (os cintas-largas) tiveram uma redução da população de 74% e passaram por vários tipos de invasão – seringalistas, madeireiras e, agora, os garimpeiros" Já era previsível o aumento da tensão na área? No caso específico da exploração de diamantes, já se imaginava que a tensão fosse aumentar entre os cintas-largas. Também já se sabia da presença de aliciamento de índios para a prática da garimpagem. Há grupos interessados em aliciar para tirar proveito econômico. Isso não é novidade para esse governo nem para o governo anterior. Todo mundo sabia disso. Como a questão indígena nunca foi prioridade em nenhum dos governos, o Executivo Federal age empurrando com a barriga e, geralmente, toma uma atitude paliativa. O que poderia ter sido feito para evitar o massacre? No caso dos cintas-largas, essa tensão já estava muito latente desde 2002. O governo fez algumas medidas paliativas. Fez uma força-tarefa e fez uma ação para retirada dos garimpeiros. Chegou, inclusive, a proibir o garimpo. De março a agosto de 2003, não havia mais garimpeiros na área. Isso criou uma expectativa positiva entre os índios de que o Estado conseguiria controlar. Esse elemento, para mim, é determinante. Esse povo é de contato muito recente. O primeiro contato foi em 1969. Não tem uma política para que, depois do contato, esse povo possa ser assistido pelo governo de maneira integral. Faz o contato, mas deixa à mercê desses grupos econômicos. Onde o governo errou? O Estado deixou os índios conviverem com a violência física e cultural. Passados alguns anos, o Estado falou "agora, vamos nos fazer presente e vocês colaborem comigo que eu vou ajudar a combater essa prática ilegal". Os índios fizeram essa parceria com o Estado para combater essa invasão. Duas lideranças dos índios foram mortas a partir do momento em que estavam colaborando com o Estado para expulsar os garimpeiros. No meio de outubro do ano passado, o Estado se retira e os índios ficam entregues à própria sorte. Na minha avaliação, isso gerou um desespero nos índios. Houve uma reação desesperada e eles partiram para o enfrentamento. "Duas lideranças dos índios foram mortas a partir Houve um acirramento dos conflitos em áreas indígenas com a posse do governo Lula. A que o Cimi atribui isso? Nós avaliamos que, nos anos anteriores, havia uma violência institucionalizada. Isso quer dizer que o Estado, o Executivo Federal, era no mínimo complacente com os atos de violência praticados pelo Poder Público ou pelos agentes do Poder Público. Nós identificamos isso nos nossos relatórios anuais. Pareceu aos inimigos dos índios que, com a eleição do presidente Lula, pelo fato da sua origem política ser mais próxima das minorias étnicas, haveria, então, uma ação mais presente do governo federal. Isso se traduziria em demarcação de terras e proteção dos territórios. Eles se anteciparam à ação do governo e foram para o ataque. Por outro lado, o governo não atuou. Nos parece que foi uma antecipação a uma possível ação do governo que não veio. Os índios ficaram numa situação totalmente complicada: os seus inimigos investiram mais pesado contra eles e, ao mesmo tempo, o governo, que deveria atuar em defesa deles e dos seus territórios, não veio. Como o senhor avalia as diferentes posturas dentro governo em relação à homologação da reserva Raposa Serra do Sol? A gente entende que há uma falsa argumentação de que a demarcação em área contínua colocaria em risco a segurança nacional. "Há uma falsa argumentação de que a demarcação O que significa uma demarcação em área contínua? Essa terra faz fronteira com Venezuela e Guiana. Ela é uma área de fronteira. O que se diz é que os índios, sozinhos, em área de fronteira, não terão condições de garantir a segurança do território nacional. Esse é um discurso falso porque mais de 5 mil quilômetros das fronteiras brasileiras já são ocupadas por índios. A experiência histórica mostra exatamente o contrário. São os índios que habitam aquela região e são eles que denunciaram em vários momentos a presença de estrangeiros em território nacional. Esse argumento do Ministério da Articulação Política é totalmente descabido. Ele propõe que se retire uma faixa de 15 quilômetros da terra indígena para colocar não índios na região. Quem seriam esses não índios que eles se propõem a colocar lá dentro? Sete grandes rizicultores que são invasores da terra indígena Raposa Serra do Sol. Que possibilidade esses setes rizicultores teriam de proteger a fronteira quando você tem uma população de 15 mil indígenas que, até hoje, estão guardando essa fronteira? Para nós, esse é um argumento que não tem fundamento nenhum. Na verdade, esse argumento pretende legitimar a continuidade desses sete rizicultores, invasores da terra indígena. "O argumento (de que reserva indígena em zona
É possível porque a portaria que já demarcou a terra indígena diz que deve permanecer dentro da Raposa Serra do Sol o pelotão especial do Exército, que já existe próximo à cidade de Uiramutã. Esse pelotão já está lá dentro e não vai sair com a homologação da terra. Eu acho que deveria haver um programa no Ministério da Defesa que inclua os índios como colaboradores na proteção de áreas de fronteira. O Exército pode estabelecer um diálogo com os índios. Nós não vemos uma contradição nisso. Se você pega a população rural de Roraima, ela é de apenas 77 mil habitantes. Desses 77 mil, 40 mil são índios. Quem é que vai poder proteger a fronteira brasileira se não são os índios? Esses 40 mil são os que estão na fronteira. E a posição do governo de Roraima em relação à homologação da Raposa Serra do Sol? O governador Flamarion Portela chegou a se filiar ao PT para tentar evitar a demarcação de toda a área. Por duas razões: pressão de grupos econômicos e o próprio preconceito. O estado de Roraima é uma das unidades da federação mais racistas. Eles não acreditam que os índios sejam capazes de participar do desenvolvimento do estado. O discurso deles contra a homologação da Raposa Serra do Sol é de que 46% das terras de Roraima seriam constituídas por terras indígenas e isso inviabilizaria o estado. Isso é um discurso totalmente insustentável porque, se a gente comparar metade do território de Roraima com a Suíça, isso vai dar quatro vezes o território suíço, um dos países mais ricos do mundo. Para os países capitalistas, a extensão territorial não está vinculada à geração de riqueza. "O estado de Roraima é uma das unidades Qual o papel dos índios na economia de Roraima? Esses índios ocupantes da Raposa Serra do Sol são os maiores criadores de gado de Roraima. Ninguém diz isso! Eles têm um rebanho de 30 mil cabeças. Essas 30 mil cabeças representam 10% do rebanho do estado. Sabem como eles começaram esse programa? Sem apoio nenhum do Estado. Foi o Vaticano que doou recursos para a compra de um pequeno rebanho durante visita dos índios ao Papa. Imagine se isso fosse dentro de um programa que tivesse assessoria técnica e subvenção. Há possibilidade deles se tornarem pólos produtores agrícolas. Basta que se rompa o preconceito e se crie condições de se estabelecer o diálogo e o envolvimento dessas populações nesse possível programa. Por que o senhor acha que ainda existe muito preconceito em relação aos índios? Há vários fatores. São 500 anos de história viciada, onde o preconceito ficou escondido. Por outro lado, a gente percebe um esforço na academia e nas escolas para trabalhar esse tema com outro enfoque. Existem grupos que têm interesse em perpetuar esse preconceito e isso se dá dentro de uma guerra ideológica na sociedade brasileira. O poder dominante quer se apropriar das riquezas das terras indígenas e, para facilitar a exploração dessas riquezas, é melhor que os falsos valores e conceitos sobre os índios brasileiros se mantenham. "O poder dominante quer se apropriar das riquezas Voltando ao massacre de garimpeiros pelos índios em Rondônia: precisou acontecer essa tragédia para o governo retomar a questão da regulamentação da mineração em terras indígenas? O artigo 44 do Estatuto do Índio prevê aos índios o direito garimpagem. O que se discute é o tipo de garimpagem que está sendo feito. Índio ou não índio não pode estar praticando depredação ambiental. O tipo de garimpo é o que se discute. O discurso que está posto na mídia, de que é preciso legalizar, já existe para os índios da forma tradicional, sem trazer danos ao meio ambiente. O que nós estamos discutindo é a violência. Ela não ocorre apenas pela prática ilegal de exploração de riquezas em terras indígenas. Há muitas outras atividades que são legais acontecendo em terras indígenas e nem por isso deixam de ser atividades violentas. "O Estatuto do Índio prevê aos índios o Quais, por exemplo? Existem parcerias entre os índios e criadores do gado. No Mato Grosso do Sul, isso não deveria existir. O fato de haver nessa terra uma atividade legal não quer dizer que essa terra está isenta de violência. Por que? A invasão da terra continua existindo. Nas várias áreas que estão demarcadas atualmente, existem várias atividades que são violentas. Nós estamos vendo que há índios que são aliciados por grupos que exploram as jazidas das terras e que se colocam contra os grupos de garimpeiros que não estão com esses aliciadores. Se você legaliza (a exploração mineral em terras indígenas), vão continuar existindo aqueles que conseguiram a concessão e que vão estar praticando a “exploração legalizada” e a grande massa que vai estar sempre questionando para poder, também, ter acesso e direito àquela prática. Não entendemos que isso resolva o problema. Legalizada ou não, se não houver por parte do governo o cumprimento da Constituição Federal de proteger a fronteira indígena e de garantir uma alternativa de vida para os índios que ali habitam, o conflito vai continuar existindo. "Há índios que são aliciados por grupos que exploram as jazidas das terras e que se colocam contra os grupos de garimpeiros que não estão com esses aliciadores" Quando se fala em legalização, também está implícita a legalização de parcerias dos índios com empresas mineradoras. Como o Cimi avalia isso? Já existem propostas como a do senador Romero Jucá (PMDB-RR), que estabelece regras para a exploração por empresas mineradoras em terras indígenas. Já há no DNPM centenas de pedidos de autorização de empresas para exploração mineral em terras indígenas. Para nós, isso é muito complicado. Se a gente toma como referência o projeto do senador Romero Jucá, ele é totalmente ineficiente em relação à proteção ambiental, à integridade física da comunidade indígena e à participação dos índios nos grupos. O senhor teme que, sob o impacto desse massacre de garimpeiros pelos cintas-largas, haja uma pressão maior de mineradoras para a legalização da exploração mineral por grandes grupos privados em terras indígenas? Acho. Lamentavelmente, a morte desses garimpeiros vai contribuir para o lobby das mineradoras na busca da legalização. Não vai ajudar os índios nem os garimpeiros. |
Deixe um comentário