André Sathler Guimarães* e Malena Rehbein Rodrigues **
A noção de que as instituições importam rendeu a alguns economistas a láurea do Nobel. Suas bases, entretanto, foram lançadas pelos fundadores da Ciência Política, entre eles aqueles que receberam, em comum, o título de contratualistas. Na verdade, o tema da responsabilidade coletiva é tão antigo quanto o Velho Testamento (veja-se, a título de exemplo, Jeremias 31:29). Com base no que imaginamos como necessário para uma vivência em conjunto, construímos prédios, que depois nos constroem, parafraseando Churchill. E por que tanto importam as instituições? Afinal, o que são elas?
Instituições – legislativos, prefeituras, sistema de saúde e de educação, por exemplo – conformam o comportamento coletivo e estruturam os seus resultados. Uma vez que existam, compõem o próprio processo de pensamento – pensamos com o Estado, pensamos com a democracia representativa, como se fosse automático algo que na verdade foi criado por nós em busca de segurança e harmonia social. De per si, instituições não são neutras – funcionam como modelos morais e cognitivos que vão orientar a interpretação e a ação. Dessa forma as instituições geram previsibilidade.
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O Estado é a mãe de muitas instituições. Partindo da constatação lógica de que a interação entre indivíduos autointeressados com o poder de se matarem uns aos outros conduziria inexoravelmente à violência, Hobbes imaginou o Leviatã, com poder monstruoso para subjugar a todos. Notavelmente, Hobbes concebeu esse monstro como um aglomerado plasmático de todos os cidadãos e, portanto, passível de ser subjugado pelo todo – na raiz de sua força está também o caminho para sua queda. Foi assim que Hobbes abriu a porta para concepções ulteriores de instalação da soberania no conjunto do povo.
A mãe das instituições segue parindo suas crias, as quais continuamente geram consensos sobre determinadas expectativas de comportamento como fundamento da ação. As pessoas aderem racionalmente ao contrato, porque imaginam que todos os outros atores estão aderindo, em trocas mutuamente vantajosas. Aqui retomamos um tema que exploramos já em outras oportunidades no Congresso em Foco (confira aqui e aqui): a confiança. Se o Estado existe e subsiste é porque ele organiza a confiança.
Arriscam-se os governantes que se acreditam onipotentes, ou seja, de certo modo creem que o contrato está assinado de uma vez por todas. Estudiosa sobre democracia e participação, Nádia Urbinatti insiste que a manifestação da soberania via representação, na democracia representativa, não é um cheque em branco – tem que ser continuamente repactuada. Portanto para além do voto (sim, ele continua sendo um importante legitimador, mas hoje está longe de ser suficiente, como claramente tem demonstrado a sociedade). Inserindo o pensamento de Urbinatti na esfera do contratualismo podemos afirmar que o contrato fundante do Estado precisa ser continuamente renegociado. Afinal, a queda peremptória de toda forma de poder está a apenas três dias de fome de distância – não é por menos que Habermas costumava afirmar que o Estado é a guerra civil continuamente impedida.Não se concebe mais, sobretudo em tempos de internet e informação amplamente disseminada, uma cidadania afásica e autocomplacente com categorias políticas obsoletas. A satisfação difusa com as instituições, originária da confiança mínima no pacto de não-agressão, pode rapidamente se converter em formas difusas de ressentimento, a envenenar todo o ambiente político. No palco, então, a desorganização da confiança.
Quando é o próprio Estado a romper compromissos – achando que, por ser a mãe das instituições, pode arbitrariamente romper a qualquer tempo o contrato tácito, mas não menos importante, de compromissos com a sociedade – é inexorável o questionamento ao contrato original. O sistema de Previdência Social é um caso clássico e não é por outra razão que a mera sugestão de sua reforma cause tanta reação. A Previdência trouxe ao trabalhador a possibilidade de planejar sua vida no longo prazo, concebendo um tempo de ócio remunerado, no qual teria, minimamente, asseguradas suas condições de sobrevivência. Com base nas regras propostas, sejam elas quais forem, os trabalhadores estruturam suas vidas e suas expectativas, para o tempo longo de toda uma geração, e se movem no presente com base na previsibilidade gerada pelas regras (instituições) quanto ao futuro.
Mais do que ativos financeiros, o cidadão tem ativos emocionais e planejamento de vida investidos na Previdência. Protagoniza sua vida com base no modelo mental configurado pelas instituições e confiante que o Estado-Mãe as manterá em disciplina. Essa confiança é o colágeno que une todos a todos e cada um ao Leviatã. Se o cidadão não puder confiar neste contrato por que há de cumprir sua parte? Como lidar com o processo esquizofrênico de atender ao compromisso firmado com o Estado, mas tendo de agir também como se ele pudesse literalmente lhe “passar a perna” em algum momento?
Propor uma reforma na Previdência que atinge diretamente pessoas que já estão no sistema, por mais que se imaginem criativas regras de transição, é mexer no coração dessa confiança, desestabilizando-a. Algo extremamente grave para uma democracia. Sofisticados argumentos jurídicos estão no debate à tentativa de justificar que não há que se reclamar contra direitos que não seriam, à guisa de contraponto, adquiridos.
Tenta-se justificar o rompimento por parte do Estado, sem dar-se conta de que o não só este contrato, mas tantos outros, podem simplesmente ser entendidos como nulos pela sociedade. É preciso organizar a confiança, tema que retomaremos em outro artigo.
* André Sathler Guimarães é doutor em Filosofia e coordenador do mestrado profissional em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados.
** Malena Rehbein Rodrigues é doutora em Ciência Política e docente do mestrado profissional em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados.
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