Laurez Cerqueira*
Maio passou como uma lâmina no tempo. Foi-se, e com ele o esquecimento de que em 2006 o ódio rompeu as entranhas da cidade de São Paulo, se espalhou por ruas e cidades do interior pedalando as estatísticas da violência, como uma centelha que escapou do ranger de dentes de detrás das grades dos presídios. O sangue escorreu pelas calçadas de ruas e praças paulistanas. Delegacias, edifícios públicos e bancos alvejados por integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC). Ônibus arderam
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Os paulistanos que movem a poderosa máquina da produção e consumo viram que São Paulo pode parar. Aquele rapaz ou aquela moça na esquina, ou qualquer um que cruzava a multidão anônima da cidade, poderia ser da organização criminosa. Esse terror acossou corações e mentes. Assim viveu São Paulo, a meca do capitalismo selvagem brasileiro, o drama de estar refém do crime organizado. Os novaiorquinos sentiram algo parecido quando foram acordados do “sonho americano” pelos estrondos do choque dos aviões com as torres gêmeas, no 11 de Setembro.
Há muito tempo, nos piques e repiques da crise econômica e social, as ruas de São Paulo carregam tensões altamente explosivas. Uma pedrada num vidro de uma loja num momento de ira popular poderia desencadear um distúrbio de proporções inimagináveis. Assim vive a metrópole que pulsa no ritmo frenético do trabalho e da busca de poder e dinheiro como fetiches, contradições próprias da sociedade da desigualdade e da opressão. Os ataques aos edifícios públicos e aos bancos foram sintomáticos. O Estado, representado pela organização jurídico-policial opressora e protetora de privilégios de classe, e os bancos frutos maiores da acumulação capitalista. Esse conflito latente sempre existiu, mas costuma ser tratado com indiferença, em geral pelos governantes e pela sociedade.
No mais recente ciclo de industrialização do Brasil, São Paulo concentrou o maior número de poderosas empresas industriais e atraiu o maior contingente de pessoas no fluxo migratório campo-cidade, nas últimas décadas, onde vive uma multidão em condições sub-humanas a disputar as migalhas da mais poderosa elite do país.
Em entrevista à imprensa, naqueles dias de pânico, o ex-governador Cláudio Lambo deu uma declaração surpreendente, como que acordado de um pesadelo. Disse: “nós temos uma minoria branca muito perversa”. “A bolsa da burguesia vai ter que ser aberta para sustentar a miséria social brasileira, no sentido de haver mais emprego, mais educação, mais solidariedade, mais diálogo e reciprocidade de situações”. Claudio Lembo é um homem de formação intelectual sólida, conhece bem os problemas brasileiros, apesar de aliado a forças políticas que dão sustentação ao status quo.
Essa mesma elite branca, escravocrata, referida, se juntou para proclamar a República, em 1889, e camuflou o seu desenraizamento. Manteve ao longo dos séculos os olhos voltados para além das águas do Atlântico ou para o hemisfério norte. Tornou-se indiferente aos problemas vividos pelos de baixo, não demonstrou compromisso com a gente que tece com suas mãos o futuro e a identidade do país. Manteve o sentimento patrimonialista pela “res publica”, loteou os orçamentos públicos e os cargos da burocracia do Estado como quem reparte um bolo de festa. Aos mais próximos, as maiores fatias. Para os de baixo, as migalhas e os presídios destinados aos acometidos pelas patologias sociais decorrentes do peso das contradições da pirâmide social.
Vale lembrar que a violência social vem de raízes profundas, varando séculos. No processo de colonização, onde os brancos europeus até agora foram vencedores, as cicatrizes estão abertas. O sangue das nações indígenas dizimadas escorreu pelo campo. Os negros ainda carregam na pele e na alma as marcas da humilhação. “O homem cordial” escamoteia sua violência com a índole religiosa. Busca a paz em igrejas e em templos de consumo. Surdos, não percebem o crepitar do discurso na batida do Hip Hop, que embala a multidão de excluídos da nova geração, na teia da mídia eletrônica expandida pelas novas tecnologias, dissolvendo os muros que impedem a comunicação entre comunidades pobres de todo o país.
Num país como o Brasil, as estatísticas da criminalidade confirmam a perversidade da herança colonial. Essa violência permanece latente nas relações sociais, no “nós e eles” do centro e periferia, entre morro e asfalto, no trabalho, com a exploração patronal, na arquitetura das residências, onde os brancos se acomodam nas salas, e a cozinha e a dependência de empregados continuam senzala, enfim, a desigualdade permanece e o cinismo cresce forjando a “felicidade” do “País Tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza”.
A droga chegou como uma moeda forte para parte das comunidades pobres das periferias das metrópoles. Movimenta as economias locais, gera renda para quem não teve oportunidade de emprego ou desistiu dos miseráveis salários e do tratamento degradante dos patrões. O Brasil tem cerca de 9 milhões de jovens zoando sem trabalho e fora da escola, espalhados pelas principais capitais do país. Esse número tem sido reduzido pelos programas sociais do governo, mas ainda é pouco. O tráfico cresceu, se estruturou, se armou, criou um Estado dentro do Estado, com regras e comando. Agora desafia o Estado republicano, para desespero do establishment.
Enganam aqueles que acham que a violência vai ser estancada apenas com leis mais duras, com policiais mais bem armados, com mais presídios. Dizem os especialistas que o crime se organiza no vácuo de valores humanistas, da necessidade de pertencimento a grupos sociais ou da extrema carência material e familiar. A democracia política chega tarde para os de baixo e mais tarde a democracia plena. Evidentemente, isso não quer dizer que a criminalidade é um fenômeno apenas das classes desfavorecidas, mas as condições sociais propiciam os desequilíbrios. A criminalidade no ambiente dos ricos é conhecida. Também conhecido o tratamento dispensado pelo Judiciário aos ricos e aos pobres. O fato é que os valores humanistas não têm a força necessária para gerar instituições suficientes e disponíveis para toda a população. O sistema educacional e as instituições políticas não conseguem atrair todos os que têm a necessidade de pertencimento, para que a civilização possa superar a barbárie.
*Laurez Cerqueira é autor de Florestan Fernandes – Vida e Obra; Florestan Fernandes – um mestre radical; e, O Outro Lado do Real, este em parceria com Henrique Fontana.
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