Por Claudio Sales e Richard Hochstetler*
Situações extraordinárias requerem medidas extraordinárias. O perigo nessas situações é que oportunistas se aproveitem do estado de excepcionalidade para extrair vantagens. Portanto, é preciso ficar atento para que a urgência não resulte em precipitação.
A Medida Provisória 1.055 é urgente, relevante e oportuna, pois visa a criar as condições para a tomada de decisões complexas no enfrentamento de uma crise hídrica sem precedentes. Isso seria feito por meio da criação da CREG (Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética).
A CREG busca superar a fragilidade da governança da gestão dos recursos hídricos no país. Afinal, a disfuncionalidade institucional vigente fica flagrante quando se torna necessário recorrer a uma medida provisória para assegurar que ocorram, de forma tempestiva, coisas básicas como: (a) a submissão das informações e subsídios técnicos requeridos para a tomada de decisões; e (b) o cumprimento das diretrizes estabelecidas pelos órgãos e entidades da administração pública.
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A operação hidrelétrica no país vem sendo continuamente prejudicada pela imposição de restrições hídricas para atendimento de outras demandas. Uma análise de custo-benefício é necessária para se avaliar se a redução da geração hidrelétrica em prol de outros usos dos recursos hídricos é de interesse público. Por ser uma análise complexa – pois envolve a valoração de atividades muito diferentes, sob a competência de diversos órgãos e entidades da administração pública –, é essencial o estabelecimento de uma governança institucional apropriada que ordene esse processo e evite a crise hídrica. Essa é uma boa pauta para avaliação dos legisladores no próximo ano.
Mas colocando foco nas questões mais urgentes, os legisladores precisam estar especialmente atentos às emendas feitas à Medida Provisória 1.055 que se desviam do tema principal. Como todo parlamentar sabe, este é o caminho mais rápido para a aprovação de medidas legislativas. É por isto que cada vez que uma medida provisória é submetida ao Congresso Nacional, os deputados e os senadores são assediados por lobistas afoitos para inclusão de seus pleitos.
Não é fácil para qualquer parlamentar, que se envolve em tantos temas, avaliar quando um pleito é do interesse público ou de um pequeno grupo de beneficiados. É dessa dificuldade que surgem os famosos “jabutis”. E a Medida Provisória (MPV) 1.055 não é exceção: na versão a ser apreciada no Plenário da Câmara já foram inseridos vários jabutis que buscam trazer benefícios para alguns às custas do coletivo.
O primeiro jabuti é o artigo 8º da MPV 1.055 – artigo introduzido por emendas na Câmara dos Deputados –, que amplia as benesses já concedidas na recém aprovada Lei 14.182 (que, por sua vez, também surgiu de jabutis inseridos no processo de conversão de medida provisória – MPV 1.031).
Os beneficiados pelo artigo 8º são investidores em pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) e usinas existentes enquadradas no Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa). Já não bastasse a contratação garantida, sem concorrência de outras fontes e de forma desatrelada da efetiva demanda dos consumidores concedida pela lei 14.182, a emenda amplia os já descabidos benefícios originais:
- elevando a remuneração de PCHs para nível acima do preço máximo admitido para PCHs no Leilão A-6 de 2019 a fim de cobrir o valor dos encargos e tributos que incidem sobre a atividade;
- aumentando o prazo dos contratos das PCHs de 20 para 25 anos;
- possibilitando que os contratos do Proinfa sejam prorrogados, sem concorrência; e
- permitindo que os detentores dos contratos do Proinfa possam “adicionar ao seu contrato energia proveniente de novos empreendimentos baseados em energia solar, eólica, biomassa ou biogás, no montante equivalente a diferença entre sua garantia física e a potência instalada”.
Essas fontes, que eram consideradas “alternativas” no passado, hoje: (a) são parte do “mainstream”; (b) apresentam custos competitivos; e (c) respondem por parcela significativa da expansão da matriz elétrica. Não se justifica a concessão de incentivos adicionais.
Um segundo jabuti é o artigo 6º, que propõe prorrogar de 2027 para 2035 os subsídios concedidos para as termelétricas a carvão mineral nacional, desde que passem a substituir pelo menos 50% do carvão mineral por biomassa de reflorestamento ou resíduos da agricultura a partir 2028. Apesar de esta iniciativa prever a conversão de usinas para fontes renováveis, a inserção por emenda em medida provisória definitivamente não é o caminho adequado para definir políticas energéticas como essa.
Mas o terceiro – e talvez o mais grave – jabuti da MP 1.055 aparece no §1º do artigo 4º, que prevê que a Aneel deve “estabelecer mecanismos vinculados às tarifas de transmissão de forma a integrar o sistema de gasodutos associado à contratação de reserva de capacidade às instalações de rede básica, com vistas a definição da receita anual permitida.” Tradução: a proposta é que os gasodutos a serem construídos para chegar aos locais onde seriam instaladas termelétricas a serem contratadas nos Leilões de Reserva de Capacidade (conforme previsto na Lei 14.182 – art. 20) sejam inteiramente custeados pelos consumidores de energia elétrica.
A Lei 14.182 representou um grau de intervenção sem precedentes no planejamento energético, ditando onde, quando, quanto e qual fonte deve ser contratada. Essa lei estipula a contratação de Reserva de Capacidade de termelétricas a gás natural em locais que não possuem suprimento de gás natural para ‘promover a interiorização do suprimento de gás’. No entanto, a emenda na verdade atende aos interesses do setor de gás natural com recursos do setor de energia elétrica, já que a maior parte da energia gerada na região precisará ser transportada por milhares de quilômetros até chegar aos grandes centros urbanos na região Sudeste.
Como se já não bastassem essas inserções em prol dos interesses de agentes do setor de gás natural, no parágrafo seguinte do artigo 4º da MPV 1.055 prevê-se ainda a contratação dessas termelétricas por meio de “procedimentos competitivos simplificados”. Este procedimento foi autorizado recentemente pela CREG para contratação urgente para abastecimento durante a crise hídrica e durante o período de recomposição do sistema, e jamais deveria ser utilizada para a expansão do parque gerador com horizontes de décadas à frente.
A proliferação de jabutis atendendo aos interesses de poucos lobistas às custas do consumidor de eletricidade precisa acabar. Podemos contar com o empenho dos nossos parlamentares na busca do bem comum e na prevenção de uma crise hídrica?
*Claudio Sales e Richard Hochstetler integram o Instituto Acende Brasil
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