Por André Rehbein Sathler*
O Twiter no Brasil foi tomado de um novo frenesi com o surgimento e rápida produção de impactos da conta brasileira Sleeping Giants. O perfil alerta empresas sobre veiculação de anúncios em sites que promovam fake news. Como, na lógica da publicidade na internet, os anúncios são distribuídos por algoritmos, que, por sua vez, computam quantidade de views, muitas vezes as empresas nem ficam sabendo onde efetivamente os anúncios são disponibilizados – por isso são chamadas de gigantes adormecidos.
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Nos Estados Unidos, a conta foi responsável por minar a estratégia da extrema direita, de utilizar sites de alta visualização, justamente por conta do uso de fake news e de táticas da imprensa sensacionalista, para atrair anúncios e, portanto, recursos.
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A reação inicial da maior parte das empresas quando alertadas, felizmente, é a de pedir desculpas e bloquear os anúncios. Por quê? A primeira e mais superficial resposta aponta para o temor de um boicote ou perda de clientes. Contudo, essas empresas são grandes demais – gigantes, não é mesmo? – para que esse tipo de preocupação seja, exclusivamente, a causa das reações. Além disso, organizar um boicote bem sucedido não é tão simples, mesmo em tempos de internet. Haja vista tentativas de boicotes a postos de gasolina nos tempos em que o preço dos combustíveis estava muito elevado. Não deu certo.
Há um elemento de preocupação com a imagem, evidentemente. Mas há também um componente de cidadania organizacional. Controversa, a terminologia ganhou força na década de 1990, juntamente com o movimento de responsabilidade social. Apontava para a necessidade de uma preocupação mais ampla das empresas, para além do retorno aos acionistas. Valorização dos stakeholders (qualquer grupo que seja afetado pelo comportamento das empresas)e não só dos shareholders (acionistas).
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A polêmica relacionada à aplicação do conceito se deve à uma visão antropológica do termo – cidadãos seriam exclusivamente seres humanos, dotados de razão e capazes de obedecer a um conjunto de deveres fazendo jus, igualmente, a um conjunto de direitos. A capacidade das pessoas jurídicas para a cidadania, contudo, já estava firmada inclusive no Direito positivo, no séc. XIX, com a decisão da Suprema Corte dos EUA de que as disposições da Décima Quarta Emenda à Constituição daquele país se aplicava as empresas (US Supreme Court, Santa Clara County v. Southern Pacific R. Co., 118 US 394 – 1886). Concebida após a Guerra Civil americana para proteger os direitos dos escravos libertados, a Décima Quarta Emenda foi reivindicada pela Southern Pacific para afirmar que uma empresa não poderia sofrer discriminação com base na identidade corporativa.
O fato é que as empresas, fenômeno da modernidade, expandiram-se, cresceram e tornaram-se agentes capazes de produzir efeitos muito mais fortes no mundo do que o de simples cidadãos. Este mês mesmo, o valor de mercado de Microsoft e Apple ultrapassou o do PIB do Brasil. Aliás, às vezes surgem rankings que comparam os valores de mercado das cem maiores empresas com o PIB dos cem maiores países e, quando se combinam as duas listas, restam entre os cem primeiros mais empresas do que países.
Diante dessa realidade, as empresas cada vez mais são cobradas a assumirem posturas compatíveis com os direitos que têm (e pelos quais brigaram e brigam judicialmente). Exercerem deveres de cidadania. Nisso se fazem acompanhar pelo direito positivo – no caso brasileiro, o juiz que sucedeu Sergio Moro em Curitiba, Dr. Luiz Antônio Bonat, foi pioneiro ao condenar criminalmente uma pessoa jurídica.
Ao menos no nível discursivo, as empresas, particularmente no séc. XXI, adotam uma postura cidadã e responsável, com declarações de missão, visão, com a adoção de um rol de valores e princípios éticos, com a divulgação e disseminação de práticas de responsabilidade social. Ser uma empresa com propósito faz parte desse contexto. Muito arriscado manchar esse discurso por meio da associação, acidental, do nome da empresa a práticas de disseminação de mentiras e fraude ideológica.
Aqui está o motivo do sucesso do Sleeping Giants. Um movimento que veio para ficar. Um instrumento de auditoria pública e transparente sobre o comportamento e a coerência das empresas e organizações com relação aos valores que dizem assumir e manter. Bem-vindos ao Brasil!
*André Rehbein Sathler é Doutor em Filosofia e Professor de Comportamento Organizacional
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