O termo “Centrão” foi utilizado para designar um grupo suprapartidário de parlamentares, com claro viés de direita, criado no final do primeiro ano da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988. O agrupamento político em questão assegurou ao então presidente da República José Sarney a manutenção do sistema presidencialista e o mandato de cinco anos.
Um dos líderes do antigo Centrão cunhou a famosa máxima “é dando que se recebe”. Em outras palavras, como identificou a imprensa na ocasião, o “dando” significava apoio parlamentar e o “recebe” dizia respeito à indicação de cargos no Executivo e o “recebimento” de verbas orçamentárias.
O antigo Centrão aparentemente deixou de existir com o final do governo Sarney. Mas, sem essa denominação e sem tanta organicidade política, seus principais líderes apoiaram a candidatura de Fernando Collor. Seguindo a lógica “se há governo, sou a favor”, integraram os governos Collor, Itamar e Fernando Henrique.
Os governos Lula e Dilma conviveram, com profunda intimidade, com um novo Centrão. Matéria do Estadão de 9 de março de 2021, intitulado “Centrão de Bolsonaro já foi de Lula… Pode voltar a ser? Veja o cenário”, afirmou:
“O Centrão é o Centrão. Suprapartidário, o bloco nunca deixou de ser governo. E nada indica que está disposto a deixar de ser. Ex-deputado ‘dissidente’ em bancadas do bloco informal, o presidente Jair Bolsonaro sabe bem que a ideologia desses partidos se resume a cifras, cargos e palanques.
Com novos rostos, o Centrão aliou-se a Bolsonaro sem cerimônias depois de ignorá-lo na eleição de 2018 e de ter passado todo o período de governo do PT no poder, como base de apoio do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. (…)
O exemplo mais nítido da instabilidade dos acordos com o Centrão ocorreu em 2016. O bloco se desgarrou do petismo quando a ex-presidente Dilma Rousseff deu sinais de que não resistiria ao processo de impeachment, enquanto o então vice-presidente, Michel Temer (MDB), indicou que abriria o orçamento e os cargos da Esplanada aos parlamentares do Centrão novamente. Os ministérios e as emendas, na ocasião, não bastaram”.
A referência, realizada na matéria jornalística, de que o Centrão tem uma compulsão irresistível pela presença no governo de plantão, qualquer que seja ele, fica bem demonstrada com a desenvoltura com que suas lideranças integraram os últimos governos da República. O deputado Ricardo Barros, por exemplo, figurou como líder ou vice-líder, no Congresso Nacional, de quase todos os governos após a ditadura militar.
A forte presença do Centrão nos vários governos das últimas décadas “coincide” com o frequente envolvimento de seus integrantes nos principais esquemas de corrupção que vieram a público (imagine os que permaneceram nas sombras). O “mensalão” e o “orçamento paralelo” (ou secreto) são dois exemplos típicos, um mais “antigo” e o outro mais recente.
Na ementa do acórdão da Ação Penal n. 470, que julgou o escândalo do “mensalão” no Supremo Tribunal Federal (STF), consta:
“Conjunto probatório harmonioso que, evidenciando a sincronia das ações de corruptos e corruptores no mesmo sentido da prática
criminosa comum, conduz à comprovação do amplo esquema de distribuição de dinheiro a parlamentares, os quais, em troca, ofereceram seu apoio e o de seus correligionários aos projetos de interesse do Governo Federal na Câmara dos Deputados”.
O “orçamento secreto”, conforme revelou o Estadão, consiste num esquema organizado pelo governo federal, no final do ano de 2020, para ampliar a base de apoio parlamentar. Foi criado um “orçamento paralelo” de cerca de 3 bilhões de reais em emendas. A maior parte dessas proposições orçamentárias, operadas por membros do Centrão, foi destinada à compra de tratores e equipamentos, especialmente agrícolas, por preços até 259% acima dos valores de referência fixados pela própria Administração Pública.
Em função do que foi destacado, a imagem do Centrão esteve e está (pelo visto, estará) umbilicalmente vinculada às práticas políticas e administrativas mais condenáveis. O atual Ministro-Chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, resumiu, numa paródia, o conceito experimentado por esse bloco político. Cantou o militar: “se gritar pega Centrão, não fica um, meu irmão”.
Em texto recente, o professor Wilson Gomes fez as seguintes e incisivas indagações:
“E se eu lhe perguntasse qual o partido político brasileiro que há anos é líder do ranking dos que têm o maior número de parlamentares denunciados, indiciados ou condenados por crimes contra a Administração Pública? Ou qual o partido teve o maior número de políticos investigados durante a Lava Jato? Ou qual o partido cuja bancada mais cresceu na Câmara dos Deputados nas últimas eleições? Você saberia dizer?”
A resposta é Partido Progressista (PP), considerado o núcleo do Centrão. Essa agremiação política (“Progressistas”) foi mencionada 1.206 vezes no aludido acórdão da Ação Penal n. 470 (“Mensalão”). Aliás, o professor Wilson Gomes, no texto citado, fez uma pertinente observação. As atenções, notadamente midiáticas, para o Centrão “escondem” os Progressistas (ex-PP), o PL (ex-PR), os Republicanos (ex-PRB) e o PTB, agremiações que efetivamente recebem votos.
Quando essa turma se junta a um governo disposto ou vocacionado ao “toma-lá-dá-cá” a “festa” está armada. Infelizmente, é uma festa ou farra com o dinheiro público e que produz invariavelmente corrupção e malversação em níveis consideráveis e crescentes.
Vale uma palavra acerca da vocação do núcleo político do governo federal para as práticas suspeitas ou diretamente desonestas. Imagine, só imagine, uma família com atuação política regional e limitada pelo raio de ação do “baixo clero”. As presepadas foram efetivadas com o que estava ao alcance: a) milícias (com integrantes homenageados e incorporados como assessores); b) rachadinhas (repartição de remunerações de servidores dos gabinetes); c) frequentes operações com imóveis (com uma curva ascendente) e d) lavagem de dinheiro em empresas de menor expressão (comércio varejista de chocolates, por exemplo). O envolvimento em corrupção “grossa” ou “pesada” dependia da ação numa arena política mais ampla e com o concurso dos parceiros certos e experientes.
Portanto, somente a cegueira seletiva ou a ingenuidade em alta dose pode alimentar alguma ilusão acerca da incolumidade do núcleo familiar que conduz, de forma atabalhoada (para dizer o mínimo), os destinos políticos do País. A corrupção sistêmica existente no Brasil por décadas (e séculos) continua operando em todos os níveis governamentais, com novos e velhos atores, com novos e velhos métodos.
É crucial o combate à corrupção, independentemente das colorações político-partidárias. Pelo menos duas cautelas devem estar presentes nessa cruzada. São elas: a) não gastar a maior parte das energias nas medidas repressivas ou punitivas (os instrumentos preventivos são muito mais eficientes, embora menos pirotécnicos) e b) não considerar que a corrupção é o principal problema do Brasil (a profunda e inaceitável desigualdade socioeconômica ocupa esse posto).
Cumpre ressaltar que a corrupção (em sentido estrito, localizada nas esferas político-administrativas) tem sido instrumentalizada para esconder os mecanismos de concretização de uma sociedade extremamente injusta. É preciso uma grande conscientização e mobilização populares para que o espaço da política, intermediação entre as estruturas socioeconômicas e a sociedade civil (considerados todos os seus segmentos, classes e diversidades), possa ser utilizado para desenvolver uma governança institucional que ataque as raízes da abissal e vergonhosa desigualdade presente na sociedade brasileira.
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