Os últimos dias foram marcados pela divulgação de esquema de gestão oculta de recursos do orçamento federal atribuídos ao Ministério do Desenvolvimento Regional e entidades a ele vinculadas. O esquema consiste na transferência voluntária de recursos a municípios indicados sigilosamente por parlamentares governistas.
O esquema foi apelidado de “tratoraço”, em razão de inúmeros convênios celebrados para a compra de tratores, vários com preços muito acima do mercado, a indicar a possível existência de esquemas de corrupção e formação de caixa dois para financiamento das campanhas políticas do próximo ano, corroborado pelo fato de alguns parlamentares terem indicado recursos para cidades de estados diversos dos seus. O orçamento secreto constitui, pois, um instrumento de fraude à democracia.
É inegável a importância do orçamento para a democracia. Ele é a materialização da vontade política dos representantes do povo no parlamento. Proposto pelo Executivo, é no Legislativo que a alocação dos recursos da nação encontra legitimidade política, por meio do debate parlamentar e das alterações ali aprovadas. Muito pouco pode fazer o Executivo sem uma lei orçamentária aprovada pelo Parlamento.
Em vários países desenvolvidos, a discussão e aprovação do orçamento é objeto de atenta observação, não raro com transmissão pela televisão. Não é para menos, pois nada mais político que a discussão de onde e como se deve dar o gasto público.
Em uma democracia funcional, a relação entre Executivo e Legislativo ocorre de forma republicana, com a formação de apoio parlamentar ao governo em torno de programas e políticas públicas. Em nossa democracia disfuncional, a formação da base de apoio ao governo foi sempre marcada pela barganha de cargos e verbas em troca de apoio e fidelidade.
Nosso histórico de escândalos nesse tema impressiona. Tivemos o esquema dos anões do orçamento, o mensalão, o petrolão e, agora, o tratoraço. Durante décadas, a gestão discricionária pelo Executivo das emendas parlamentares ao orçamento foi o instrumento político utilizado para premiar ou castigar os parlamentares conforme suas posições em votações no Congresso Nacional.
Os parlamentares fiéis tinham suas emendas liberadas com presteza, os da oposição ou os infiéis tinham a execução de suas emendas postergadas ou mesmo canceladas. Isso decorria da natureza meramente autorizativa do orçamento.
As Emendas Constitucionais 86/2015 e 100/2019 atribuíram às emendas parlamentares o caráter impositivo, de tal modo que sua execução passou a ser obrigatória, com tratamento isonômico e transparente do Executivo em relação a todas elas. Problema resolvido? Infelizmente não.
Ávidos por poder sobre mais recursos do orçamento, os parlamentares, de um lado, e o Executivo, de outro, ansioso por um instrumento efetivo de barganha, engendraram um novo mecanismo para o velho modus operandi: as emendas de relator, com valor elevado e destinado a órgão, em tese, com possibilidade de fatiar os recursos de forma que a manipulação política não fique explícita.
Na aparência, ocorrem escolhas técnicas para destinação dos recursos. Não fosse a obtenção pelo Estadão de planilha oficiosa de valores indicados pelos parlamentares e de vários ofícios por eles enviados ao ministério, o esquema, embora suspeitado, não viria a lume.
O novo mecanismo é ainda pior que o anterior, uma vez que antes as emendas parlamentares favorecidas ou preteridas tinham seus patrocinadores conhecidos de forma transparente. No novo esquema, os parlamentares favorecidos e o quanto destinado a cada um ficam ocultos da sociedade, inclusive dos próprios parlamentares.
A reportagem mostrou que os valores envolvidos variam muito. Há parlamentares “contemplados” com R$ 2 milhões e outros com mais de centena de milhões, tudo sem nenhuma transparência.
Além de violar os princípios da moralidade, impessoalidade e publicidade, houve também a quebra de diversas regras orçamentárias que impedem o uso de critério meramente político para destinação de recursos.
A lei exige que as transferências voluntárias sejam pactuadas a partir de análise técnica dos pleitos propostos pelos municípios. Além disso, para o caso de obras, a legislação exige que as paralisadas tenham prioridade sobre as novas e que apenas a parte que será executada no exercício pode ser empenhada. Nada disso foi respeitado.
A edição de portaria pelo MDR para oficializar a indicação pelo relator do orçamento em nada legaliza a situação, seja para o passado, seja para o futuro, porque o Executivo não pode delegar por portaria aquilo que por lei lhe cumpre fazer. Bem ao contrário, a portaria atua como confissão da prática ilegal.
O Ministério Público de Contas junto ao TCU ofereceu representações sobre essas questões, dando origem a processos de fiscalização nos quais se pedem o cancelamento dos convênios e empenhos feitos ao arrepio da lei e a aplicação de sanções aos responsáveis que forem identificados.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para redacao@congressoemfoco.com.br.
Deixe um comentário