Uma das passagens mais brilhantes da literatura brasileira que conheço é literalmente uma passagem.
Em O Tempo e o Vento, Erico Veríssimo traça um quadro soturno em torno de Ana Terra e sua família. Nada mais tosco, praticamente primitivo, que o trabalhador pai de Ana e seus irmãos; um deles ainda “muda pra cidade” e ganha, quem sabe, alguma luz. A vida da família, em que o pai e os irmãos de Ana se dispõem a matar o próprio pai de seu filho, me faz lembrar de Hobbes quando vaticina a vida “solitária, pobre, vil, bruta e curta” dos seres humanos. Impossível vislumbrar uma risada ou mesmo um pequeno sorriso sem medo naquela miserável casa. A mãe de Ana, assim como o pai, só pode ser imaginada como uma máquina de trabalhar, e talvez rezar; nada mais.
Pois bem. As primeiras páginas que nos presenteiam com “um certo capitão Rodrigo” mereceriam, por si sós, homenagens que muitos bons livros não alcançariam a vida toda. Rodrigo entra num bar como se não coubesse dentro dele de tanta energia viva que carrega, beira uma briga, come linguiça com o quase oponente de minutos antes e sela tudo com uma simples e maravilhosa fala quando lhe oferecem pessegada com queijo. “Então traga. Gosto de tudo.” Rodrigo gosta de tudo! Adora a vida!
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Depois de imergirmos num frio e úmido campo triste ao fim da luz diurna que é o livro de Ana Terra, o Capitão Rodrigo nos resgata. Mostra o quanto pode ser rica e bela uma vida, mesmo que compartilhe misérias, provações e violências que a outros espíritos abatam. O contraste entre ambos os livros me impressiona desde que os li há muitos anos. Um dos maiores momentos da literatura brasileira, se eu tivesse que julgá-los todos.
Na verdade, eu planejara neste texto falar do calendário e das tentativas de Bolsonaro em conseguir uma reeleição. Com a popularidade bastante corroída, as decisões do presidente não conseguiram criar uma base adequada para que o Brasil se recuperasse economicamente da pandemia, o que agrava ainda mais o quadro para ele. Com medidas populistas e sem compromisso com o futuro, pretende agora distribuir dinheiro por meio de um novo auxílio social vitaminado. As consequências são funestas no imediato, porque desestruturam o exitoso programa Bolsa Família, e o auxílio não tem compromisso com o futuro, a acabar em dezembro de 2022, ano da eleição. Mais que tudo, no entanto, o calendário é o ponto.
Para agora dar um agrado aos eleitores, o presidente degrada o futuro, o qual nos devolverá problemas inflacionários, de juros, dívida e talvez câmbio. E o crescimento, e o emprego? Nada, ou muito pouco. Para Bolsonaro, a questão é o tempo. Quanto os ganhos populistas resistirão à degradação do emprego, da renda e da economia com um todo? Será que até a eleição? É um relógio político fazendo tique taque.
Eu iria intitular esta coluna o Tempo e a Eleição, mas sempre que algo começa com O Tempo e… eu me recordo com gratidão a chance de ter conhecido aquela obra de Erico Veríssimo.
O problema de Bolsonaro, da economia, da política, são muito sérios. Viveremos todos eles na pele. Estarão por aí, com certeza, sem precisarmos procurá-los. Contudo, poderemos sempre recorrer a O Tempo e o Vento para tornar nossa vida rica, iluminada. Literatura é isso. Bolsonaros passarão. Erico Veríssimo não nos abandonará. Que bom.
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