Definitivamente: não é tarefa fácil escrever sobre uma obra que contém tantas camadas e tópicos, como é o caso do filme “Medida Provisória”, dirigido pelo ator e diretor Lázaro Ramos. Então, é bom que se diga, este não será um artigo no qual o leitor sairá com aquele típico repertório de crítica cinematográfica, ainda que a minha vontade fosse a de escrever páginas e páginas para tentar falar de todos os aspectos que pude observar no filme! No entanto, como o nosso tempo é limitado, decidi tratar de um dos temas que mais me atravessaram ao assistir e refletir sobre a referida obra fílmica: a classe média negra brasileira.
Em resumo, o filme “Medida Provisória”, que teve sua estréia em 14 de abril de 2022, é baseado na peça teatral “Namíbia, Não”, do dramaturgo Aldri Anunciação, e conta a história de um Brasil do futuro, numa realidade distópica, na qual o governo brasileiro decide, de forma autoritária, que os cidadãos afrodescendentes devem se mudar para países africanos, como forma de “reparação” aos impactos negativos gerados pela escravização negra. Acompanhamos tudo isso a partir das vivências de uma família de classe média negra carioca, formada pelo advogado Antônio (Alfred Enoch), pela médica Capitú (Taís Araújo) e pelo jornalista André (Seu Jorge). Interessante pontuar que o filme, como afirmou Lázaro Ramos em entrevista ao programa Roda Viva, abre diversas janelas de discussões, passeando sobre diversos tópicos e, não necessariamente, fechando essas janelas. Ficam espaços, a princípio intencionais, para provocar os espectadores a debaterem sobre os temas depois da sessão.
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COMO A CLASSE MÉDIA NEGRA ERA REPRESENTADA
Se, para muita gente, a classe média negra brasileira nem mesmo existia, depois da estréia do filme “Medida Provisória”, passaram a conhecer não somente a sua existência, mas também os seus valores, medos e anseios. O filme consegue superar uma realidade apontada há algum tempo por fazedores e pensadores do Cinema Negro Nacional, não somente a respeito da representação estereotipada do negro em obras audiovisuais, mas também sobre a falta de personagens que encarnassem a tal classe média negra brasileira.
Para compreendermos melhor essa questão, recorreremos ao cineasta e doutor em ciência da comunicação, Joel Zito Araújo, que numa outra obra fílmica, o documentário “A Negação do Brasil” (2000), nos informa que em 1969, escrito pela autora Janete Clair, iria ao ar o primeiro grande personagem negro pertencente a classe média. Era o Dr. Percival, psiquiatra, formado na universidade Harvard, interpretado pelo ator Milton Gonçalves, na novela “Pecado Capital”. Esses personagens, integrantes da classe média negra brasileira, além de escassos, eram construídos de modo problemático, pois ainda eram personagens negros segundo uma pessoa branca, o que acabava impedindo uma construção mais complexa e adequada destes, ainda mais considerando que eram tempos de grande censura, devido a Ditadura Militar, na qual a discussão das temáticas negras, dentre outras, pairavam como um grande tabu na sociedade brasileira. Somado a isso, os atores negros, que tiveram a oportunidade de interpretar esses personagens, tinham que lidar com boa parte do público que era contra esses novos tipos de personagens negros e chegavam a enviar cartas as emissoras e jornais expressando o ódio que sentiam sobre essas tramas e histórias.
Outro fator importante para a manutenção desse cenário de escassez de personagens negros da classe média, foi a redução e invisibilização da intelectualidade negra, que sempre esteve produzindo importantes reflexões acerca da sociedade e da negritude brasileira, porém, eram classificadas pela branquitude, pejorativamente, como “militância”. Desse modo, toda essa produção intelectual foi subaproveitada na construção de produtos audiovisuais, sobretudo quando se tratavam de universos onde haveriam personagens negros que, lamentavelmente, acabavam sendo nada mais que negros por fora e brancos por dentro, até mesmo como reflexo da própria maneira com que a sociedade brasileira se estruturava à época. Hoje, apesar de todas as estatísticas confirmarem que o Brasil é um país extremamente racista, temos uma classe intelectual negra muito bem articulada e produtiva. Já temos muitas produções, dentro e fora da academia, com a capacidade de dar suporte a pesquisa de um filme como “Medida Provisória”. O próprio diretor do filme, inclusive, nos dá esse dado, através de uma entrevista que concedeu ao portal Omelete, no qual afirma que a construção do roteiro contou com a consultoria da antropóloga e pesquisadora Aline Maia, sem contar a grande colaboração de outros profissionais negros na equipe técnica e artística.
Se em outras obras brasileiras os personagens negros não faziam a menor diferença no desenvolvimento da trama, no filme “Medida Provisória” é justo o contrário, a história sequer existiria sem os personagens negros e tudo gira em torno deles. É um filme que dialoga muito bem com os valores, anseios e medos da classe média negra brasileira e, não somente por isso, já pode ser considerado um grande marco do Cinema Nacional, pois pudemos, pela primeira vez, enxergar a classe média negra brasileira, muito provavelmente não como ela é de fato, mas como ela deseja ser vista e isso é inédito no cinema comercial brasileiro, o que, por si só, pode ser um indicativo de um histórico momento de mobilidade social dos negros no Brasil, resultante das políticas de ações afirmativas e do massivo acesso as universidades brasileiras por essa parcela da população, legado de luta dos movimentos negros organizados e da gestão feita pelo Partido dos Trabalhadores no país.
COMO SE DEU A MOBILIDADE SOCIAL NEGRA NO BRASIL
Essa novidade da classe média negra brasileira conseguir se organizar a ponto de colocar, no cinema comercial, uma narrativa sobre si mesma, não é histórica somente no setor audiovisual, mas em todos os sentidos. A mobilidade social negra no Brasil, historicamente, como apontam os estudos da doutora e professora Angela Figueiredo, especialista no assunto, ocorreu de forma tutelada à branquitude, seja por apadrinhamento, casamentos interraciais ou do branqueamento de seus valores e/ou sua estética, diferente de como ocorreu nos Estados Unidos, onde, devido a segregação racial e a falta de empreendimentos e serviços acessíveis para as pessoas negras, a mobilidade social desse grupo se deu de forma muito mais independente, na qual a população negra norte-americana pode acessar a vida de classe média e manter esse status para os seus descendentes, através de acúmulo de capital e aquisição de propriedades, já que não dependiam necessariamente de apadrinhamentos ou salários como aqui no Brasil e sim de seus próprios empreendimentos. Então, o fato dos indivíduos negros brasileiros, hoje, poderem acessar uma mobilidade social e preservar seus valores negros e ainda os colocarem na pauta do cinema comercial, comunicando um pouco do que desejam para a construção de um novo projeto de nação brasileira é realmente algo muito importante.
A classe média negra brasileira, como pode ser observado no filme “Medida Provisória”, quer ser vista a partir de sua potência, inteligência e influência na cultura brasileira, quer viver num país com igualdade de oportunidades. A classe média negra não quer mais se branquear para ser aceita, ela deseja ser aceita tal como é: com seus cabelos crespos e traços fenotípicos, seu senso estético, valores, talentos e consciência racial. Ela tem medo da força arbitrária e autoritária do estado, justamente por conhecer muito bem a sua história no país e do que a branquitude já foi capaz de fazer perpetrando extrema violência. A classe média negra tem medo de perder o espaço conquistado na sociedade brasileira e, talvez, tenha medo de encarar, de modo mais profundo, a sua origem desconhecida e negada devido ao traumático processo de escravização negra nas américas. Ela também anseia ser vista como mais do que um grupo coeso. Ela deseja que suas diferentes demandas e singularidades sejam vistas e consideradas, pois não pensam a mesma coisa apenas por serem indivíduos negros: alguns querem manter relacionamentos afrocentrados, outros querem ter a liberdade de viverem relacionamentos interraciais, outros querem lutar mais ao estilo Malcom X, outros querem lutar mais ao modo Martin Luther King. Alguns querem “chegar lá” e representar a base pobre favelada, por entenderem que esses ainda não tiveram a oportunidade de chegar em espaços de privilégio para defenderem seus próprios interesses, outros não querem mais carregar o peso político de representarem a mais ninguém do que a si próprios.
Vivemos tempos difíceis, de grandes contradições. Se de um lado temos problemas sociais gravíssimos, como a insegurança alimentar, que volta a assolar o país e, como de costume, atinge em cheio a população negra, seja ela ou não de classe média, por outro lado vivemos um tempo de muitas possibilidades para os afrodescendentes, como já apontado. Basta mesmo saber se a classe média negra e o conjunto da sociedade brasileira conduzirão o futuro do país à tão sonhada democracia racial ou se escolherão reproduzir as históricas desigualdades.
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