Inauguro esse espaço com uma ode à democracia, por compreender que o Congresso em Foco é um veículo que tem essa causa em seu DNA. E como pedra angular – a que vai sustentar o improvável equilíbrio de um arco de pedras – das contribuições que imagino compartilhar com vocês leitores lanço a provocação: a democracia deve ser obrigatória.
Provoco a partir do imperativo categórico de Kant: aja como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal. Democracia implica igualdade política formal, ou seja, a desigualdade entre governantes e governados é devida exclusivamente a lapsos temporais: o governado hoje sempre poderá ser o governante amanhã. Qualquer forma de regime que implique alguma desigualdade política formal viola o imperativo categórico.
Manter o poder com base em requisitos, quaisquer que sejam (ser um filósofo mega esclarecido ou ser a cabeça por trás de uma startup unicórnio, por exemplo), que não a escolha dos cidadãos rompe com o imperativo. Alguém que o tente não poderá converter sua máxima de ação em lei universal. Qualquer um poderá reivindicar o poder com base em outros ‘requisitos’ e essa pretensão de legitimidade não terá como ser desafiada em bases racionais.
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Por mais que a conquista da igualdade formal seja hoje minimizada diante da avassaladora desigualdade real, ela é um ponto fulcral para a política. No sistema democrático, postular o poder é aberto a todos, mediante as regras estabelecidas coletivamente, e a postulação pode ser feita por todos, o que requer a igualdade formal. Dadas as condições, disputar o poder em um sistema democrático atende ao imperativo categórico. Em qualquer outra situação, o imperativo é violado.
Entendo que faço essa defesa contra o próprio Kant. Em diversos momentos, e particularmente no seu pequeno tratado sobre a Paz Perpétua, Kant compartilha temores platônicos de degeneração da democracia por conta de uma desordem inerente às massas e se afirma ‘republicano’, assumindo uma visão de divisão dos poderes como caminho moderado para o sistema político. Que eu saiba, Kant não pensou a questão da democracia sob a ótica do imperativo categórico.
Sei que o pós-modernismo trouxe a fragmentação das grandes narrativas e a espada da relativização certamente será bramida contra esse texto. Mas ouso escrevê-lo justamente em um momento que percebo que o mundo aspira pela recuperação de alguma narrativa que possa cimentar novamente a solidariedade humana, ainda que sobre uma pátina de concreto. Compreendo a igualdade formal e a democracia como frutos iluministas. O Iluminismo marcou a construção da persona ocidental, com penetrações e interpenetrações fortes com a persona oriental, e não deve ser jogado fora junto com a água do banho do bebê.
Diante do exército de relativistas, aqueles que se levantam para defender a democracia muitas vezes recorrem à definição empobrecida de Churchill, remetendo a questão ao ditado popular dos males o menor. Poucos são os que lembram da atenção que Churchill prestou ao assunto em outros momentos, como quando defende a democracia ainda que considerada apenas como um método de tomada de decisão: O processo democrático em si não é apenas ‘processo’, mas também uma importante forma de justiça distributiva. Se nenhuma reivindicação moral é mais válida do que qualquer outra, então todas as reivindicações devem estar em pé de igualdade.
Serei nesse espaço um defensor intransigente da democracia. Sem, contudo, ser um fundamentalista democrático (o que na verdade soa como um oxímoro). Quero dizer, procurarei interpretar, analisar, pensar, refletir sobre tudo o que ressoe ou se conecte ao tema democracia, inclusive suas falhas, imperfeições, vieses, insuficiências. Que o debate com você, leitor, por meio de seus comentários e sugestões de temas, possibilite avanço rumo ao cumprimento desse compromisso moral humano de alto nível que é a democracia.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para redacao@congressoemfoco.com.br.