Júlio Marcelo de Oliveira*
Não é de agora que vivemos dias de tensão política, de agressões verbais do Presidente da República a integrantes de outros Poderes e de ameaças recorrentes de ruptura institucional. Desde abril de 2020, quando o Presidente discursou em uma mobilização que pedia explicitamente intervenção militar e que foi simbolicamente realizada em frente ao Quartel-General do Exército, o tema da ruptura tem sido recorrente.
Embora não tenha ali defendido explicitamente a intervenção, o Presidente em nenhum momento admoestou a plateia, em nenhum instante fez a defesa da democracia e do necessário respeito às instituições. Seu silêncio eloquente conferiu legitimidade ao movimento. O que antes era tratado com certo desdém pelas lideranças do país, como algo pedido por lunáticos, fanáticos e saudosistas da ditadura, passou a ser visto como uma ameaça real, gerando reações múltiplas, mas sem efeitos concretos, o que manteve acesa a chama do movimento que prega a ruptura da ordem constitucional vigente.
Juristas oportunistas chegam a defender a tese de que a Constituição Federal teria reservado às Forças Armadas o “poder moderador”, a missão de pacificar e corrigir o país caso ocorra conflito entre os poderes, o que se revela absurdo pelo simples fato de as Forcas Armadas estarem subordinadas ao Presidente da República, que exerce o papel de seu comandante supremo, título imponente que bem expressa o dever de obediência a que estão adstritas. Não lhes cabe agir de ofício para dirimir conflitos entre os poderes. Qualquer ação nesse sentido significa romper a ordem constitucional.
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São oportunistas porque a tese começou a divulgada quando a questão sequer estava colocada. Difundir a tese do poder moderador funciona como uma tentativa de “preparação do terreno” no campo simbólico, de pré-legitimação no inconsciente coletivo para mais fácil aceitação pela sociedade de uma eventual intervenção militar. Contudo, para que as Forças Armadas possam atuar como corpo de bombeiros, é preciso que alguém atue como incendiário, que alguém ponha fogo na arena, que haja conflitos de tal ordem que a população não só aceite, como clame por uma intervenção militar e a receba com aplausos. Esse seria o design situacional desejado pelos que se mobilizam por uma intervenção militar.
As mobilizações convocadas em torno da celebração da independência do Brasil pelos grupos de apoio ao Presidente levaram a questão a outro patamar. Primeiro, houve e há uma permanente tentativa de desacreditar a fidedignidade do sistema brasileiro de votação e, por consequência, dos resultados das eleições. Com isso, fabrica-se a justificativa para eventual derrota em 2022: a ocorrência de fraude. Na sequência, o Presidente declara que em 2022 só trabalha com os cenários de “prisão, morte ou vitória”, o que reforça o sentimento de que não reconhecerá como legítimo nenhum resultado que não seja a sua vitória. Se não ocorrer sua vitória, o que ele e seus apoiadores farão então? Durante as manifestações, o Presidente afirmou que não cumprirá ordens do STF. Não há dúvidas, pois, de que nossa recente democracia está em risco. Os sinais são evidentes.
O que espanta não é a existência de candidatos que buscam conquistar o poder e governar de forma autoritária, mas o expressivo volume de cidadãos desencantados com a democracia e que querem se submeter a um governo assim, pessoas que têm saudade da ditadura militar e até negam que fosse uma ditadura. Por que, mais de trinta anos depois da redemocratização do país, nossa democracia não constitui um valor absoluto em nossa sociedade? Por que tanta gente aceitaria de bom grado abrir mão de seu direito de eleger seus governantes?
É comum ouvirmos de membros ilustres dos três poderes que nossa democracia está consolidada e que nossas instituições funcionam. Em certa medida, trata-se de um exercício de “wishful thinking”. Nossa democracia ainda não está consolidada como deveria e uma das principais razões para isso é justamente o fato de que as instituições funcionam, mas funcionam muito mal, com recente viés de piora.
Há uma percepção em grande parte da sociedade de que o Congresso Nacional não legisla para o bem da nação, para o bem comum, senão para grupos organizados e, muitas vezes, em benefício próprio. Há também uma percepção de que o Poder Judiciário pratica uma justiça seletiva, de que ricos ou poderosos têm direito a tratamento diferenciado que culmina quase sempre em impunidade. Além disso, as grandes operações de combate à corrupção revelaram ao país como funcionam as engrenagens do Poder Executivo quando há elevados recursos financeiros envolvidos e seu relacionamento com o Congresso Nacional.
No livro ‘Como as democracias morrem”, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt tratam dos sinais que apontam para o surgimentos de líderes populistas, demagógicos e autoritários, das estratégias por eles utilizadas para seduzir o eleitorado, mas deixam de analisar uma outra face da moeda que também atua para configurar o cenário de morte das democracias: o suicídio institucional, o mal funcionamento das instituições a ponto de minarem a necessária legitimidade política para sua existência e para a sobrevivência da democracia. Instituições que atuam de costas para a sociedade geram decepção e ressentimento.
A obra “Por que as nações fracassam”, de Daron Acemoglu e James Robinson, analisa os motivos que levam algumas nações a prosperarem e se desenvolverem, enquanto outras, em condições geográficas e culturais similares, ficam presas no atraso e no subdesenvolvimento. Os autores apontam que o mal funcionamento das instituições e a atuação extrativista das elites de cada país são fatores decisivos para o fracasso das nações, algo que parece muito presente em nossa realidade e que explica em grande parte o desencanto com nossa democracia.
Com efeito, nossa carga tributária elevada e regressiva, as inúmeras renúncias fiscais e subsídios em favor de grupos organizados, a luta pela apropriação de parcelas do orçamento ao lado da produção legislativa e dos tribunais que resulta em impunidade para os crimes cometidos por pessoas ricas ou poderosas, especialmente a corrupção, geram no cidadão o sentimento de ser explorado, expoliado por uma estrutura estatal que não devolve nada ou muito pouco em termos de serviços públicos, haja vista o estado da educação e da saúde pública e a sensação de insegurança para caminhar nas ruas das cidades brasileiras. O cidadão brasileiro se sente usado para sustentar privilégios e alimentar esquemas de corrupção bilionários.
Vários partidos políticos brasileiros viraram para seus dirigentes um modo de vida luxuoso, bancado pelos crescentes recursos do fundo partidário. Jatinhos, sedes suntuosas, hospedagem em hotéis de luxo e outros gastos nababescos são custeados com dinheiro público. Isso explica a extraordinária proliferação de partidos e a existência de dirigentes que se comportam como donos do partido, com amplos e discricionários poderes para gerir os recursos públicos graciosamente recebidos da sociedade. Evidente que isso desacredita o sistema político e a democracia.
Francis Fukuyama assinala em sua obra “Ordem e Decadência Política” que a democracia é uma construção que se sustenta sobre três pilares: um Estado moderno eficiente, movido por uma burocracia impessoal e capacitada; o império da lei, e a accountability, a responsabilidade, transparência e compromisso dos governantes com os governados.
Estamos falhando gravemente em garantir o império da lei, em fazer a lei ser aplicada a todos de igual modo, o que gera uma terrível sensação de injustiça e de desrespeito com o cidadão comum. Convivemos com o resquício feudal do foro privilegiado. A PEC que poria fim a esse anacronismo está há mais de mil dias pronta para ser votada na Câmara dos Deputados. Graças ao STF, somos o único país que não admite que alguém comece a cumprir pena mesmo que condenado em segunda instância, isto é, com todo o devido processo legal, ampla defesa e exame de provas em duas oportunidades. A demora nos longos processos resulta na prescrição dos crimes.
Dezenas de grandes operações para desmontar esquemas de corrupção foram sistematicamente anuladas pelos tribunais superiores. Há sempre um motivo novo que leva uma operação bem conduzida a ser jogada no lixo. O desmonte da operação Lava Jato, com notável empenho de alguns ministros do STF, que chegavam a se emocionar nas sessões de julgamento, jogou uma pá de cal na confiança de grande parte da sociedade em nossa capacidade de se livrar da praga da corrupção que nos assola. Somos um verdadeiro paraíso criminal para os crimes de colarinho branco. A sociedade sente isso e, com toda a razão, se ressente disso.
A impunidade no país é um câncer que corrói e mina nossa democracia. Sem o pilar do império da lei, uma democracia não pode funcionar corretamente, ela se degenera em uma democracia disfuncional mantida e usufruída por uma elite política que dela se beneficia.
Nossa democracia está fracassando a olhos vistos e de seu fracasso decorre a decepção que configura o cenário de descrença e desesperança que candidatos a tiranos tanto esperam. O lobo se veste em pele de cordeiro, se apresenta como salvador da pátria, como libertador do povo oprimido pelos políticos corruptos, quando em verdade quer apenas apropriar-se da posição de opressor para dela tirar proveito maior e deixar o povo ainda mais oprimido, o discurso da libertação usado para escravizar.
A cura para uma democracia disfuncional não é a sua supressão, mas a continua educação e mobilização da sociedade para pressionar e cobrar, de forma legítima e pacífica, o correto funcionamento das instituições, que precisam ter abertura para acolher os anseios da sociedade e compromisso com os mais elevados padrões éticos de funcionamento da política e da administração pública, até para que a democracia tenha condições de sobreviver e se fortalecer. Instituições que viram as costas para a sociedade estão cometendo suicídio, estão criando o ambiente propício para a morte da democracia.
Nossa democracia disfuncional precisa ser defendida de quem pretende eliminá-la, mas também fortemente corrigida, de modo que o império da lei consubstancie um verdadeiro estado democrático de direito, com um Estado eficiente e transparente, voltado para o bem do cidadão. Que com esses três pilares presentes, possamos construir um país com instituições que o levem a prosperar e se desenvolver de forma inclusiva, com a consolidação da democracia como valor soberano em nossa ordem política.
Se há tantas pessoas apoiando a ideia de uma intervenção militar é porque nossa democracia não corresponde ao que elas esperam. Os cidadãos não querem ser governados por bandidos impunes. As pessoas que perderam a esperança em nossa democracia estão escolhendo o caminho errado, mas sua insatisfação é legítima e não deve e não pode ser ignorada. Se o país chegar a uma terrível ruptura institucional, a culpa e a responsabilidade não serão apenas dos oportunistas que se aproveitarão da ruptura, mas também de todos os que ajudaram a criar essa triste oportunidade.
*Júlio Marcelo de Oliveira é procurador de contas junto ao TCU e diretor do Movimento do Ministério Público Democrático
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