Em janeiro de 1980 o Centro Espacial de Alcântara (CLA), planejado no regime militar e encampado pelo General João Figueiredo, era uma ameaça distante para o povo daquele paraíso, para aquele povo negro e de origem indígena que desde o XVII ali estava. O que estava em jogo e permanece é a colossal riqueza da cultura de Alcântara, produzida naquela área rica em biodiversidade. Na Amazônia Legal, a Área de Proteção Ambiental das Reentrâncias Maranhenses, foi reconhecida como patrimônio nacional brasileiro em 1948. Aquele é um mundo, entretanto, que não mais existe.
Está em pauta a exploração comercial da base de Alcântara que demanda ampliação da área ocupada, projeto que caminha há anos, proposta avançada no governo Bolsonaro, e consolidada por um Acordo de Salvaguardas Tecnológicas assinado entre o Brasil e os Estados Unidos. Juristas afirmam que tal projeto implica em desvio de finalidade do Centro de Lançamento. Como ocorreu na construção do CLA a partir de 1982, o planejamento da expansão demanda remoção de pessoas e, como na implantação do centro, mais quilombolas seriam deslocados de suas comunidades ou de Alcântara . Ilustra Luzia Diniz, quilombola deslocada de sua comunidade para a agrovila Marudá, nos informa contundente: “…. nós sofremos todas as consequências desse projeto. Eu digo que é um projeto que foi da morte porque deixamos pra trás a nossa vida, nós deixamos todo um patrimônio de diversidade que a natureza nos oferecia, tudo com fartura, nós tínhamos uma riqueza imensa de produtos naturais”. . Não há autonomia comunitária e as vilas não têm potencial produtivo.
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Foram muitas as perversidades nos territórios, como o fato de o exército capacitar negros para remover a pessoas e treinar 30 jovens de Alcântara em São José dos Campos, em 1982, para se tornassem soldados. Esses “Filhos de Alcântara” foram trabalhar na base e atuaram na remoção, inclusive de seus parentes.
Bairros de São Luís, a 22 km de Alcântara, abrigam pessoas vulnerabilizadas pelos processos de desarticulação comunitária e expulsão. São locais que acumulam desigualdades, racismo ambiental e precariedade de serviços, embora as famílias pratiquem sua arte e religiões, enriquecendo a singularidade da cultura maranhense na capital. Assevera Luzia Diniz: “…muitos companheiros e companheiras tiveram de abandonar as casas e morar em São Luís em busca de uma vida melhor e alternativa para seus filhos também estudarem. Mas só que isso não foi bom. Em parte, a maioria naqueles jovens que foram para São Luís entraram no mundo errado, da droga, da prostituição, da gangue e tivemos famílias que receberam seus filhos no caixão. Então, isso é muito triste”.
O Estado brasileiro está sob julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pelas violações cometidas contra a comunidade quilombola, onde as mulheres que foram submetidas a violência sexual, e toda sorte de constrangimentos, pagam alto preço pela desestruturação comunitária e desarticulação do processo produtivo, onde até a autonomia para empreender tem sido impedida! “Esse caso é emblemático do tratamento histórico que o Estado dispensa às comunidades quilombolas do Brasil, especialmente aquelas cujo conflito se dá diretamente com o Estado”, segundo o cientista social Danilo Serejo, coordenador do Grupo de Assessoria Jurídica das Comunidades Quilombolas de Alcantara .
Na audiência pública da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), realizada no Chile, em 26 de abril passado, o governo brasileiro pediu perdão formal pelas violações de direitos previstos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos . Foram 40 anos de remoções forçadas e desapropriações nos quilombos, sem que fossem ouvidos, sem que os laudos técnicos e portarias de reconhecimento fossem considerados ou as audiências públicas respeitadas. Foi um pedido de perdão seguido de proposta de criação de um Grupo de Trabalho pelo Presidente Lula, para cumprir o estabelecido no Tratado, e inclui reparação financeira, como demandado pelas comunidades. No entanto, os quilombolas não acreditam que as violações cessaram. Avalia o pesquisador Danilo Serejo : “Com relação ao pedido de desculpas feito durante a audiência, considero importante, mas está aquém do que pedimos e merecemos. O Estado pediu desculpas, mas naquilo que nos é mais caro – a titulação, não assumiu compromissos concretos.”
A denúncia do Estado perante a CIDH feita pelos quilombolas cria mais uma oportunidade para que o Brasil aproxime o discurso de Direitos Humanos da prática e honre o compromisso constitucional de proteger essas comunidades, celeiros de biodiversidade e cultura. Traz o executivo para o cumprimento da constituição e dos compromissos firmados com o conjunto de nações signatárias da Convenção, ainda ignorados no caso das comunidades negras e de outros povos tradicionais. Certamente por isso o Presidente Lula estabeleceu prazos, por meio do Decreto nº 11.502, para a titulação progressiva dos territórios. Afinal, o reconhecimento das comunidades está formalizado pela Fundação Palmares desde 2004, resta efetivar a titulação pelos órgãos responsáveis. Serejo analisa:
“É a primeira vez na História do país que o Estado está sendo julgado por crimes cometidos contra quilombolas. É um caso cuja importância transcende muito as partes diretamente envolvidas… O caso em julgamento não se desloca dessa realidade de abandono e seu resultado deverá criar um importante precedente jurídico no Sistema Interamericano de Direitos Humanos em relação a proteção de territórios Quilombolas no Brasil.” Oxalá!
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