por William Callegaro, Caio França e Fernando Guida Sandoval*
Infelizmente, a importância da adoção ainda é subestimada no Brasil. Para muitas pessoas, a ideia só aparece quando todas as possibilidades de gerar um filho se esgotam, para outras, ela representa apenas um meio de ajudar a garantir uma vida digna para o adotando. Nessa lógica, não é incomum observar a reprodução da ideia da adoção como um ato louvável e orientado por motivações altruístas. Todavia, nunca é suficiente ressaltar que adotar uma criança ou adolescente não é um ato de caridade, mas sim de responsabilização incondicionalmente.
Um dos grandes enganos que ainda resiste em relação à parentalidade adotiva é de que, por ser uma escolha eletiva, a responsabilidade pelo desenvolvimento e bem-estar das crianças adotadas é diferente daquela que surge com a geração de um filho biológico. Por conta disso, um problema importante ora enfrentado é a devolução de crianças após a formalização da adoção, simplesmente porque os adotantes tiveram as suas expectativas pelo filho ideal frustradas diante dos desafios inerentes à parentalidade.
Todavia, o comprometimento que deveria ser a maior preocupação daqueles que pretendem adotar acaba se tornando uma questão de segundo plano devido aos preconceitos que ainda circundam a ideia da adoção. Um dos vários motivos que impedem o nosso amadurecimento na pauta é a ficção social que insiste na ideia de que a “verdade biológica” é a “verdade real”, isto é, que filhos adotivos nunca poderiam cultivar os mesmos laços de afeto, cumplicidade e amor que seriam naturalmente esperados da relação entre os filhos biológicos e seus pais. A superficialidade com que o tema é tratado leva a uma visão da adoção como uma parentalidade de segunda classe, o que certamente não corresponde à realidade.
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Outra das falácias alimentadas socialmente é a de que a genética ou a história de vida das crianças adotadas poderia se tornar um problema, impedindo o estabelecimento da harmonia familiar e até mesmo afastando esses jovens das expectativas morais da família adotiva. O receio é fundado em concepções preconceituosas sobre o desenvolvimento do caráter individual em situações de marginalização, refletindo a lógica determinista de que uma origem “distinta” e experiências difíceis enfrentadas por uma pessoa ao longo da vida resultariam no seu corrompimento moral.
Não é preciso dizer que julgamentos como esse são enganosos e não podem ser reproduzidos se pretendemos avançar enquanto sociedade. É certo que crianças e adolescentes adotados podem sim ter vivido diversos traumas ao longo de sua formação, o que requer de seus pais adotivos especiais cuidado e compreensão de modo a garantir a sua plena integração à família e à sociedade, entretanto, a disposição para zelar pelo bem-estar dos filhos é uma prerrogativa da parentalidade, e não seria diferente no caso de crianças adotadas. Afeto e dedicação devem ser abundantes para qualquer pessoa que pretenda ter um filho, seja por meio da adoção ou da gestação. Já o antigo conceito de “eugenia” deveria ser eliminado por completo no mínimo pela observação da História.
Vencidas as barreiras que impõem óbice à própria ideia da adoção, novas questões tomam corpo uma vez que a decisão é tomada. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) coletados hoje, o Brasil conta com 4.374 crianças e adolescentes disponíveis para adoção, enquanto o número de pretendentes na fila de espera é de 38.141. A explicação para a permanência de tantos jovens em abrigos de acolhimento institucional são as restrições impostas pelos próprios adotantes à sua disposição para receber uma criança, bem como falta de Varas Especializadas de Infância e Juventude no Estado
Apurando dados divulgados pelo CNJ, o Observatório do 3º Setor concluiu que mais de 60% dos pretendentes não aceitam adotar irmãos, 58% almejam crianças até 4 anos de idade e 26,1% desejam crianças brancas. Apenas 4,52% dos candidatos a adotantes aceitam adotar maiores de 8 anos, faixa etária na qual se encontra quase 70% das crianças aptas para adoção no Brasil. É claro que os números não fecham e, para adotar crianças na primeira infância, o tempo de espera pode (e costuma) levar anos.
A adoção tardia, como é chamada a adoção de crianças com mais de 6 anos ou mesmo a adoção de crianças com alguma enfermidade crônica, ganhou força com o reconhecimento das famílias LGBT+ pelo Supremo Tribunal Federal em 2015. Desde então, casais homoafetivos demonstraram ter maior disposição para adotar crianças mais velhas e com irmãos, ou aquelas que possuem alguma doença crônica. Poderíamos dizer que pessoas LGBT+ são menos capturadas pela idealização da extrema ortodoxia ou conservadorismo, vez que a sua sexualidade pode já ter sido o motivo de quebra dessa mesma expectativa aos olhos dos próprios pais e famílias.
O que os relatos de famílias que adotaram aqueles jovens que não se enquadram no perfil delineado pelas preferências da grande maioria dos pretendentes demonstra é que as mais diversas dificuldades de adaptação podem ser superadas com o empenho ativo dos pais em prover um ambiente seguro, com abertura ao diálogo e atenção às necessidades específicas de cada criança. Esses pais nos mostram que a responsabilidade pelo bem-estar dos jovens não pode estar sujeita à sua conformação com a ideia do ideal. Nesses lares, a adoção se torna sinônimo de amor incondicional.
Ademais, é praticamente impossível pensarmos em adoção sem reforçarmos a importância do trabalho realizado pelos grupos de apoio a adoção no país, fundamentais na preparação das famílias interessadas em adotar. Esses grupos contam com a reunião de pais adotivos, que atuam voluntariamente, na preparação das famílias interessadas em adotar crianças e adolescentes. Contam com profissionais técnicos, especialista em atendimento psicossocial e abrange parcerias com o Poder Judiciário e o Ministério Público. Atualmente, existem 200 grupos no Brasil e 64 desses estão constituídos no Estado de São Paulo.
Se existem diversos desafios para garantir que crianças e adolescentes em situação de acolhimento institucional encontrem um lar cheio de cuidado e afeto, é certo que nenhum deles é intransponível. Mudar o cenário da adoção no Brasil é um objetivo que devemos buscar como sociedade, combatendo o preconceito, e também como indivíduos, tendo clareza sobre o compromisso que essa escolha envolve. Sobretudo, é necessário que a responsabilização e a disposição para amar e acolher venham sempre em primeiro lugar na decisão de adotar uma criança.
* William Callegaro é advogado, ativista por direitos humanos e especialista em direitos fundamentais. Caio França é Deputado Estadual por São Paulo e Coordenador da Frente Parlamentar de Apoio à Adoção. Fernando Guida Sandoval é advogado pela USP, mestre em Direito pela Universidade de Chicago.
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