Kelly Tiburcio
Um fato é que as pessoas cometem erros. A vida pública, por exemplo, é recheada de situações nas quais as pessoas se “equivocam”, mas os tratamentos dados a esses “equívocos” podem ser completamente diferentes. Por que será que isso acontece?
Invoquemos alguns exemplos a fim de seguirmos refletindo sobre essa questão. O primeiro caso é o da atriz e apresentadora Whoopi Goldberg, que, num programa de TV norte-americano (The View), fez um comentário considerado equivocado, por algumas pessoas, a respeito do nazismo, pois afirmou que o nazismo não foi uma questão de raça. Apesar de existir um contexto bem complexo a respeito da fala de Whoopi, a única coisa que ficou evidente foi o “equívoco” da apresentadora, que chegou a ser suspensa, por duas semanas, do talk show e chamada de antissemita nas redes sociais.
No calor das discussões deixamos escapar todo o contexto que permeia a fala da atriz, então vamos aos fatos. O já mencionado programa de TV estava reportando um caso que ocorreu numa escola, localizada no estado do Tennessee (EUA). A polêmica partiu do fato desta escola ter banido o romance gráfico “Maus”, do cartunista Art Spiegelman, que retrata as experiências de seu pai, um judeu polonês que sobreviveu a auschwitz (campo de concentração nazista). O curioso é que a alegação da escola para banir o livro não foi outra, senão, pela nudez e palavrões. Vale salientar que, desde 2021, diversos estados norte-americanos vem apresentando projetos de leis que visam proibir discussões raciais e LGBTQIA+ em salas de aula, o que tem movimentado a opinião pública em torno dessas temáticas, chegando aos programas de TV… E aí, dentro de todo esse contexto, chegamos a polemica fala de Whoopi Goldberg, que expressou sua surpresa, e até revolta, pelo fato da escola se chocar mais com a nudez e os palavrões contidos na obra do que com as milhões de mortes provocadas pelo holocausto e, então, ela seguiu proferindo as palavras das quais, mais tarde, veio a público se desculpar: “(…) se vocês vão fazer isso, então vamos ser honestos. Porque o Holocausto não é sobre raça”. Após ser “sutilmente” contestada por uma colega de programa, Whoopi seguiu dizendo que não considerava o holocausto uma questão racial, mas um problema de desumanidade entre brancos e de como as pessoas se tratam.
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O conteúdo da frase dita pela apresentadora pode conter equívocos, já que o racismo é, certamente, um dos argumentos centrais do nazismo, mas, infelizmente, se demonstra correto quando percebemos os pesos e medidas diferentes para situações muito semelhantes. Considerar a fala de Whoopi antissemita, a ponto de suspendê-la do programa que apresenta não é somente um enquadramento qualquer. Esse é o poder e o privilégio de nomear as coisas e quem o detém é a branquitude. Basta perceber o que acontece quando uma pessoa, sobretudo branca, pública ou não, profere frases indiscutivelmente racistas contra não brancos, especialmente contra os pretos. No Brasil, por exemplo, um jornalista, branco, afirmou que um motorista que estava buzinando e atrapalhando a gravação do programa só poderia ser “um preto” para estar fazendo aquilo. Quando as pessoas reagiram ao evidente ato racista do tal jornalista e o mesmo foi afastado da emissora na qual trabalhava, rapidamente recebeu um novo emprego, amplo apoio de colegas que trataram de enquadrar a atitude dele não como um equívoco, mas como uma piada inocente, no máximo, uma brincadeira fora de hora.
Recentemente, um podcaster famoso no Brasil, foi demitido da própria empresa por ter declarado que os nazistas deveriam ter o direito de constituir um partido político e defender suas ideias, no entanto, o mesmo não aconteceu quando ele afirmou que emitir uma opinião racista não deveria ser considerado crime. Ele disse isso no último país a abolir a escravização de pessoas pretas e que hoje é a população mais discriminada. País que pratica um terrível genocídio contra essa mesma gente por sua cor de pele, país que se sensibiliza quando a dor é de branco, mas que se cala quando é na “senzala”.
Kelly Tiburcio é cineasta e graduanda no curso de História, é produtora da série NarraPreta, na qual aborda temas relativos à produção audiovisual e ao cinema negro. Dirigiu os documentários Não Grita e Primeiramente, Marielle. É uma das escritoras da coluna “Olhares Negros”.
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