É uma das cenas mais icônicas da história do cinema. O homem das cavernas segura o osso de um fêmur e percebe que pode usá-lo como ferramenta para ajudá-lo a abater um animal. Feliz com a conquista, ele atira o seu instrumento para o ar. Que sobe girando até se fundir à imagem de uma astronave no espaço. O resumo magnífico da evolução humana retratado no genial “2001, uma Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick.
Segundo a versão de Kubrick, a ferramenta original que desencadeou todo o processo de evolução humana não chegou às mãos do homem com o propósito de construir. Mas de destruir. A primeira vez que o homem usou um artefato como extensão das suas mãos e de seus braços teria sido para matar. Para agredir.
Ao estilo Kubrick, vamos, então, fundir a cena original do homem das cavernas utilizando o osso para abater um animal com uma cena do Twitter na semana passada. Janja, a mulher do presidente Lula faz um comentário sobre o lamentável episódio ocorrido no Senado, quando o senador Eduardo Girão (Novo-CE) tentou presentear o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, com uma réplica de um feto humano. “Você é gigante. Eles são um nada”, escreveu Janja. O vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos), filho do ex-presidente Jair Bolsonaro, entrou, então, com o seguinte comentário: “Imagina isso acasalando com o Lula na prisão? Esperar o quê disso?” Finalmente, o deputado André Janones (Avante-MG), completou o circo assim: “Imagina sua mãe acasalando com os outros soldados do Exército enquanto era casada com seu pai? Só podia dar nisso”.
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Milhares de anos depois de o homem, portanto, criar sua primeira ferramenta com o propósito de agredir, dois homens valem-se da evolução a que chegamos com o mesmo propósito. Agredir. Atacar. Para perderem completamente a noção de civilidade. Dois parlamentares. Eleitos pelo povo.
Talvez a exibição mútua de falta de educação dos dois parlamentares seja infelizmente somente o lado menos perigoso de tudo isso. As redes sociais estão sendo literalmente usadas para, mais do que agredir e atacar, matar pessoas. Elas têm sido a base na qual se combinam chacinas de crianças em creches e escolas. Onde pessoas têm sido convidadas a se automutilar em campeonatos macabros. Onde grupos combinaram a tentativa de um golpe na democracia invadindo e depredando os três principais prédios da República.
Evoluímos milênios, portanto, para retornar à lógica e à falta de regras das cavernas. Evoluímos milênios para que as nossas modernas ferramentas tenham tão somente o mesmo propósito dos ossos mais rudimentares, como lá atrás usamos pela primeira vez, como extensões dos nossos corpos. Estamos de volta às cavernas.
No momento em que esse texto é escrito, a Câmara dos Deputados discute se colocará em votação o projeto de lei 2630, o PL das Fake News. Ninguém deseja censura. Ninguém deseja cerceamento à liberdade de expressão. Mas ninguém deseja também o retorno da barbárie. Ao longo desses milênios, desde que o primeiro homem transformou o primeiro osso em ferramenta, grande parte do marco civilizatório consistiu exatamente em estabelecer limites para os ímpetos de selvageria do bicho homem. O bicho homem não se diferenciou dos demais animais somente pela capacidade de utilizar ferramentas para ampliar suas habilidades. Diferenciou-se dos outros animais também porque aprendeu a conter seus instintos limitando assim a sua ampliada capacidade de destruição. Isso é civilização.
Talvez o PL das Fake News tenha problemas. Talvez haja pontos nos quais ele possa ser aperfeiçoado. Mas a vida sem lei, a vida sem regra é o retorno à barbárie. É a terra que nada constrói. Que tudo destrói.
É o retorno à caverna. E de nada adianta que a tela do computador ou do celular se ilumine no momento em que é ligada. Lá dentro, a caverna é escura. Como escura é qualquer caverna.
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