André Neto *
Tipo um girassol, meu olho busca o sol
Mano, crer que o ódio é solução
É ser sommelier de anzol
Barco a deriva sem farol
Nem sinal de aurora boreal
Minha voz corta a noite igual um rouxinol no foco de pôr o amor no hall
(Trecho de Principia, de Emicida)
Nasci preto em um lar evangélico e aprendi que antes de preto eu deveria ser crente. Me tornei preto à dura sorte quando tive entendimento que os olhares sobre mim eram diferentes daqueles lançados sobre outros e desconfiei que era por causa da minha negritude.
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Na igreja onde cresci, não tenho nenhuma recordação de alguma palestra, debate ou mensagem bíblica abordando o tema do racismo. Mas discursos, testemunhos e palestras onde outras expressões de fé e religiosidades eram tratadas como diabólicas… Ah! Sim, isso eu lembro bem. O combate ao racismo e à intolerância religiosa não estava no radar da igreja dos anos 90.
O letramento racial é algo que muito recentemente entrou em pauta nas igrejas evangélicas tradicionais. Proponho um grande pacote de situações que possam lançar luz à questão do racismo religioso entre os evangélicos, mas trarei três aspectos neste texto.
Primeiro vem a questão histórica da origem dos protestantes brasileiros. Em sua maioria, as primeiras igrejas protestantes no Brasil foram implementadas por sujeitos ligados ao colonialismo e ao escravagismo[1]. Em segundo lugar, a formação teológica dos pastores também foi subsidiada pelos missionários estrangeiros, especialmente estadunidenses que ensinavam conforme a sua visão de mundo e seus interesses sociopolíticos. Não lhes interessava colocar em discussão as questões raciais e a luta pelos direitos civis e suas reverberações no Brasil pois precisavam preservar a imagem projetada de “povo eleito”. Por fim, sendo a tarefa dos crentes em Jesus fazer discípulos de todas as nações, e adotando para isso o vocabulário e o pensamento militar (missão, estratégia, alvo…), os “povos” foram reduzidos a alvos a serem alcançados e, como prova disso, deveriam deixar tudo o que lhes dá identidade cultural. Os resistentes ao trânsito religioso são chamados de “escravizados pelo mal” ou pelo próprio Diabo. Os termos “escravo” ou “escravizado” são retirados da Bíblia Sagrada sem uma mínima reflexão de suas implicações no contexto de um país que ainda apresenta casos de trabalhos análogos à escravidão em pleno século 21. Essa linguagem e forma exclusivista e violenta de vivenciar o cristianismo elegeu como principal objeto de combate as minorias – sejam de raça, de gênero, de sexualidade ou de religiosidade.
Toda a linguagem, pensamento e expressão religiosa protestante foi marcada pela alteridade, pela lógica de eliminação de todas as outras religiões, pela universalidade do cristianismo. Um dos mais fortes argumentos que colocam em movimento atos de racismo religioso é a transposição de conceitos de uma religião à outra. Se no cristianismo há a categoria “diabo” ou “demônios”, eles devem ser relacionados em outra religião como a(s) divindade(s) dela, não importando se naquela religião ou religiosidade há ou não essa categoria.
A lógica da equivocada mãe soteropolitana é a da guerra santa, da missão de salvar o mundo do mal representado no “descrente”, do exclusivismo e da eliminação (mesmo que simbólica) do outro. Riscar o livro do Emicida com recomendações de leituras bíblicas é, na ótica de muitos evangélicos, promover a salvação do outro. É cumprir a missão dada por Deus como se Deus fosse cristão. Mas Deus não é cristão, como disse Desmond Tutu. Deus é representado como luz em muitas religiões – inclusive no cristianismo.
Com meus colegas de mestrado em História, praticantes do Candomblé, aprendi que nessa religião não há “diabo”. Tive a oportunidade de, sem medo de falar e ouvir, aprender que não há sentido algum em transportar os meus conceitos e minhas categorias às expressões religiosas alheias. Pude sentar com eles, vê-los reverenciando os seus anciãos e seus iguais com uma deferência exemplar. Participei de celebrações ecumênicas e ouvi seu canto que me trouxe uma certa saudade de uma terra que não conheci, ainda. Fui acolhido como amigo, mesmo sendo pastor batista e um potencial agressor. Também troquei figurinhas. Expus as mazelas da minha denominação com sinceridade e a riqueza de sua história com orgulho e fui ouvido com atenção, com gentileza.
Na mesa comum, com eles dividi “as pequenas alegrias da vida adulta” de cada semestre e avaliações vencidas. Alcançamos os nossos diplomas “com a fúria da beleza do Sol”. Lembro-me de Hugo, colega que não conseguiu chegar ao final desejado e como sua comunidade de fé lhe foi solidária. Isso não me fez menos “crente”, mas me ajudou a me perceber mais preto e mais cristão, afinal de contas, como diz o Emicida: “no caminho da luz, todo mundo é preto.”
[1] Recomendo a leitura de “O Protestantismo Brasileiro”, de Émile G. Leonard; “…Nós, os Batistas”, da ilustríssima professora Dra. Marli Geralda Teixeira e “Visões Protestantes da Escravidão” da incansável pesquisadora Dra. Elizete da Silva.
* André Neto é pastor da Primeira Igreja Batista de Ubatã (BA) . Foi ordenado em 2012, tendo sido antes pastor auxiliar na Igreja Batista da Pituba, em Salvador (BA), e pastor auxiliar na Igreja Batista da Avenida, em Feira de Santana (BA). Licenciado em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Nordeste (STBNE) e mestre em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Além de pastor, é professor do Seminário Teológico Batista do Nordeste e bacharelando em Mídias e Tecnologias pela Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Ele pode ser contatado pelo e-mail: pr.andreneto@gmail.com ou pelo Instagram: @prandreneto.
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