A voz mais estridente da manifestação “em defesa do Estado Democrático de Direito” era do pastor Silas Malafaia. Patrocinador do ato de 25 de fevereiro na avenida Paulista em favor do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo vociferou contra o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Superior Tribunal Federal (STF) e principalmente contra o ministro Alexandre de Moraes, mesmo dizendo que não estava ali para atacar ninguém. Afirmou haver uma “engenharia do mal para querer prender Jair Messias Bolsonaro”, acrescentando: “eu não desejo isso para você, mas vou te deixar aqui uma palavra. Se eles te prenderem, você vai sair de lá exaltado”.
A ex-primeira-dama, Michelle Bolsonaro, evangélica, também deu sua contribuição. “Não tem como não se emocionar vendo o exército de Deus nas ruas”, afirmou, dirigindo-se ao público que se acotovelava diante do trio elétrico. “Desde 2017 nós estamos sofrendo. Nós estamos sofrendo porque exaltamos o nome de Deus no Brasil”. E ainda recitou uma versão própria do salmo 24: iniciou com “Do Senhor é o Brasil e sua plenitude” e incluiu o nome do país por mais duas vezes no texto do salmista.
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O senador Magno Malta (PL-ES), também evangélico, exortou aos presentes a “marcharem”. Comparou a situação atuação a um mar revolto, mas afirmou: “a diferença é que Jesus está no nosso barco” e “foi o próprio Deus quem escolheu Bolsonaro”. Todos os exemplos retirados dos discursos da manifestação, além de outros tantos que poderia citar aqui e que acompanharam a caminhada de Bolsonaro até a presidência da República, dão ao senso comum que a base dele, política e eleitoral é evangélica. Será?
Os evangélicos mais conservadores e, por consequência os que mais aparecem como apoiadores do ex-presidente, foram apresentados como a face do bolsonarismo. No entanto, o perfil traçado pelo Monitor do Debate Político no Meio Digital da Universidade de São Paulo (USP) durante o ato na avenida Paulista mostrou que não é bem assim. Coordenado pelos professores Pablo Ortellado e Márcio Moretto Ribeiro, o estudo mostra dados interessantes. Primeiro foi a contestação do número superestimado de presentes.
Ao contrário dos 750 mil apregoados pelo secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, o número mais próximo da realidade foi de 185 mil pessoas. Mesmo bem menor, não é pouco se levarmos em conta o calor que fazia naquele domingo numa avenida que tem poucos locais sombreados para fugir do sol. Nem os 30º de temperatura diminuíram o ânimo dos presentes a exercerem o sacrossanto direito à manifestação.
Há muita avaliação enviesada sobre o ato. E estigmatizada, principalmente em relação aos evangélicos. Quem não viu o vídeo das senhoras que justificaram estar no ato com a bandeira de Israel “porque somos cristãs, assim como Israel”? Rapidamente, a resposta foi relacionada à alienação-dos-evangélicos-que-apoiam-Bolsonaro (mesmo que 67% do público tenha respondido ter ensino superior). Desde que o ex-presidente assumiu o poder, essa versão foi facilmente comprada. Mas o produto entregue não é bem esse, como mostra a pesquisa organizada por Ortellado e Ribeiro.
Apesar do palanque evangélico, o perfil levantado na manifestação é que 43% dos presentes se declararam católicos, contra 29% de evangélicos. Outros 10% disseram ser espíritas/kardecistas, 7% responderam outras religiões e 10% disseram não seguir qualquer religião. Os presentes não eram apenas paulistanos, mas de outras cidades do Estado e do País. Isso dá uma amostra diversa que quebra o paradigma da cara evangélica do bolsonarismo. O que isso muda? Pouca coisa, afinal ela continua cristã conservadora. Só não é majoritariamente evangélica.
Basta ver a composição da Câmara dos Deputados, mapeada pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER) na eleição de 2022. Dos deputados federais eleitos, 235 se declaram católicos, totalizando pouco mais de 45%. Em segundo lugar ficaram os 86 deputados que se identificam apenas como cristãos, sem explicitar a denominação. Somente na terceira colocação é que apareceram os 76 deputados que se declararam evangélicos. Outras religiões surgiram, mas a formação da Câmara segue o retrato da população brasileira que ainda é de maioria católica.
Quando se fala em atividade da Bancada da Bíblia, é comum relacionar todos os parlamentares e seus pleitos conservadores ao movimento evangélico. A associação é fácil porque são os deputados evangélicos que mais aparecem na mídia. Mas há católicos que pegam carona na força resultante dessa exposição, como a deputada federal Chris Tonietto (PL-RJ), “advogada, católica, esposa e mãe” como se define nas redes sociais. Ela é a porta-voz do movimento pró-vida, que defende o Estatuto do Nascituro e a criminalização de qualquer tipo de aborto, inclusive o legal.
Outras figuras católicas também são fortes no bolsonarismo, como o padre Paulo Ricardo, que tirou foto empunhando armas ao lado do falecido guru da direita, Olavo de Carvalho. Há também Ives Gandra, que além de jurista reconhecido é membro da Opus Dei. Gandra é o fundador do Instituto Brasileiro de Direito e Religião, que diz ter como objetivo “proporcionar conhecimento técnico a profissionais conscientes da profundidade histórica da nossa tradição jurídica ocidental, que foi construída acima de tudo — embora muitas vezes rica em tensões — pelo equilíbrio colaborativo entre religião e direito, fé e razão”.
A influência de Gandra e do IBDR no governo Bolsonaro sempre foi grande, tanto que a filha do jurista, Angela Gandra Martins, foi secretária Nacional da Família, do Ministério da Mulher, capitaneado por Damares Alves, hoje senadora (Republicanos-DF). Angela e o pai defendem a criminalização do aborto.
Prova disso é que o IBDR emitiu um parecer defendendo a conduta da juíza catarinense Joana Ribeiro Zimmer. Para quem não se lembra do nome, em 2022 ela negou autorização para interrupção da gravidez de uma menina de 11 anos que engravidou de um adolescente de 13 anos. No parecer, o IBDR apoiou a decisão da juíza, alegando que o aborto não poderia ser realizado porque não houve crime de estupro. “A menina e o adolescente mantiveram seguidas relações sexuais consentidas por ambos”, segue o texto.
De acordo com a Súmula 593 do Superior Tribunal de Justiça, o “crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente”. Caiu por terra a proposta de “equilíbrio colaborativo entre religião e direito, fé e razão” preconizada pelo IBDR. Nada mais desequilibrado do que um parecer que relativiza o crime de estupro de vulnerável.
As chamadas pautas de costumes são muito caras aos conservadores, sempre contra a qualquer avanço ou até mesmo manutenção de direitos. O perfil dos manifestantes do ato de 25 de fevereiro também mostrou isso. Diante da pergunta “no que diz respeito a temas como família, drogas e punição a criminosos, se considera conservador?”, 78% dos presentes responderam “muito conservador” e 18%, “um pouco conservador” (2% se classificaram como nada conservador e 1% não soube responder).
A esquerda ainda tem enorme dificuldade em comunicar com eficiência suas propostas e por isso patina diante das desinformações como kit gay e banheiros unissex nas escolas infantis, só para citar algumas. O governo federal padece do mesmo mal. O Ministério da Saúde publicou, no dia 29, uma nota técnica afirmando que a legislação que prevê o aborto legal “não impôs qualquer limite temporal para a sua realização, não cabe aos serviços de saúde limitar a interpretação desse direito, especialmente quando a própria literatura e ciência internacional não estabelecem limite”.
Diante da grita de parlamentares bolsonaristas e do presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL), o ministério retirou rapidamente a nota do ar. A ministra Nísia Trindade alegou que não sabia da nota, que estava em viagem e que vai tratar do tema com a Advocacia Geral da União e com o Supremo. O presidente Lula (PT) tem se mantido distante do assunto e de outras pautas de costumes. Diante da mudez seletiva do presidente e da incapacidade da esquerda e do governo em defender com clareza seus pontos de vista, o conservadorismo vai ganhando cada vez mais espaço. Tanto faz quantas pessoas realmente estiveram na avenida Paulista.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
* Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica sobre a cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte dos grupos de pesquisa do LAR (Laboratório de Antropologia da Religião – Unicamp) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo – PUC-SP). Também integra o coletivo Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero de São Paulo.
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