Vinicius do Valle *
Recentemente, o governo federal lançou uma campanha voltada para divulgar seus feitos e incentivar um espírito de ‘união nacional’ no país. Temas como vacinação, cuidado com crianças e atenção aos mais pobres são abordados diretamente nos vídeos. Há também elementos mais subliminares, como a expressão ‘glória a Deus’, presente em um deles. Para os menos atentos, isso pode passar despercebido, mas no mundo da comunicação política, onde nenhuma palavra ou expressão é inocente, isso sinaliza uma tentativa de aproximação com um setor avesso ao governo: os evangélicos.
Essa campanha governamental toca em uma das questões mais sensíveis do nosso tempo: a união nacional. Aqui, importante esclarecer, não me refiro a um patriotismo vulgar, mas a um sentimento de pertencimento cultural à sociedade brasileira. O recente livro de Thomas Traumann e Felipe Nunes, intitulado Biografia do Abismo, retrata uma sociedade altamente polarizada. Nela, escolhas cotidianas como a escola dos filhos, destinos de férias, estabelecimentos comerciais e preferências artísticas e midiáticas são guiadas pela consonância ou discordância com as posições políticas dos indivíduos. Deixando de lado, por um momento, o conteúdo dessas posições (o que, sabemos, é difícil), o ponto é que construir uma sociedade nesses moldes é uma tarefa complicada. Nesse sentido, a campanha do governo, ainda que acerte em seu conteúdo, parece apontar para uma realidade distante, quase paralela. Uma das razões centrais para tal cisão social, além de toda a questão que envolve a circulação de informações na era das redes sociais, é o abismo existente nas visões de mundo entre setores culturalmente progressistas e setores religiosos, principalmente os evangélicos.
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Nas eleições do ano passado, segundo o Datafolha na véspera do segundo turno, 69% dos evangélicos apoiaram a candidatura do ex-presidente Jair Bolsonaro. Este índice alarmante sinaliza um grande desafio para a esquerda nos próximos pleitos. Com o crescimento anual da população evangélica, a manutenção dessa configuração ideológica entre esse grupo pode inviabilizar a esquerda em eleições executivas. A percepção da importância dessa camada da sociedade brasileira, entretanto, ainda não se consolidou entre muitos quadros da esquerda ou no atual governo. Ao longo deste ano, pouco foi feito para ensaiar uma aproximação com esse grupo. Consequentemente, pesquisas de opinião mostraram os evangélicos como um dos grupos que mais rejeitam o atual governo.
Nesse contexto, a utilização de uma expressão do meio evangélico em uma campanha de publicidade governamental, embora seja um sinal positivo, revela-se insuficiente para alterar o estado atual das coisas. Estamos diante de uma tarefa desafiadora, que exige mais do que vontade e empenho, considerando as diferenças estruturais nas visões de mundo dos evangélicos e da esquerda. Diante desta difícil tarefa, que requer que olhemos para nós mesmos e exerçamos uma alta dose de tolerância com o diferente, um esforço maior é muito bem-vindo. Sem ele, falar em união continuará soando como mera propaganda.
* Vinicius do Valle é Doutor e mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Graduado em Ciências Sociais pela mesma Universidade (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USP). Realiza pesquisa de campo junto a evangélicos há mais de 10 anos. É autor, entre outros trabalhos, de Entre a Religião e o Lulismo, publicado pela editora Recriar (2019). É diretor do Observatório Evangélico e professor universitário, atuando na pós-graduação no Instituto Europeu de Design (IED) e na Faculdade Santa Marcelina, ministrando disciplinas relacionadas à cultura contemporânea e a métodos qualitativos. Realiza pesquisas e consultoria sobre comportamento político e opinião pública. Está no Twitter (@valle_viniciuss).
Evangélico que apoia genocídio, armamento a esmo e desinformação da sociedade, o ódio entre as pessoas e aflição dos menores em benefício dos maiores. Isso é simplesmente MALIGNO.