Estamos em fevereiro, mês de Iemanjá, a rainha do mar, de carnaval e do aniversário de Martinho da Vila. Criou-se, assim, um mês muito especial, onde a herança africana se revela com muita frequência, gerando força para a comunidade. No entanto, não teremos escolas de samba, nem blocos neste carnaval. O desfile foi transferido para abril.
Muitas foram as perseguições ao carnaval, que o fizeram se alterar desde as primeiras rodas de samba, criando adaptações e reelaborações que demonstram como as danças do samba carioca são fruto de convergências e fusões, formando uma linguagem singular, que se manifesta de forma muito criativa nas escolas de samba.
No samba de quadra das escolas se evidencia uma forte influência do samba de roda da Bahia, mesclado às diferentes danças do candomblé. Se faz presente o movimento dos ombros do orixá Iemanjá, que imita o movimento das águas, bem como os movimentos de Iansã, o vento, se revelam nos braços de componentes das alas . Já os passistas dialogam com a terra através da dança do miudinho e se agitam como o crepitar do fogo
No entanto, nas rodas de batuque, que foram estudadas como uma das primeiras manifestações do samba do Rio de Janeiro e que deram origem à modalidade do samba de partido-alto, há uma influência marcante das danças de jongo, desenvolvidas no Rio por pessoas provenientes de diferentes pontos do sudeste do país. Nota-se, também, a influência da capoeira, luta-dança afro-brasileira, que foi muito praticada na cidade. Sem dúvida, somente ao observar as rodas de capoeira, alguns dos primeiros sambistas cariocas desenvolveram coreografias que eram dançadas pelos solistas, geralmente masculinos, em roda de “batuque duro”.
São variadas as danças do samba, havendo diferença na dança das passistas, dos componentes de ala, do mestre-sala e porta–bandeira e da ala das baianas, que simbolizam os movimentos da terra e a capacidade de gerar.
As baianas representam na cosmogonia da religião dos orixás, os princípios e poderes das Iya Agba, nossas venerandas mães. Nelas estão o mistério e o poder do corpo feminino de gerar e gestar filhos e alimentos que asseguram a continuidade das famílias e linhagens, que expandem a comunidade e reforçam a ancestralidade e seus cultos, tanto masculino (os Baba Egun), quanto feminino (o das Geledes), sendo a valoração do ventre fecundado, continuidade ininterrupta da vida.
Por sua capacidade de orientar e alimentar o grupo, dando vida ao que está morto por conta da sabedoria dada pelos anos vividos, elas estão na gravação feita por Martinho da Vila, que completou 84 anos neste fevereiro, inspirado na Filomena, uma digna representante das baianas de Vila Isabel.
A COMIDA DA FILÓ
Ó meu Deus, chama Noel
Pra provar também dessa comida
Cozida em Vila Isabel
Ô Filomena
Eu trouxe a família pra almoçar
Estou na colina e não tenho hora pra voltar
Posso arrumar a mesa e ajeitar o quintal pro pagode
Chegou o banjo
Hoje vai ter sacode
Rolou boato que a comida é mineira
Vai ter bife de panela com polenta e aipim
Quero provar o jiló e a berinjela
Tô sem pressa, sou assim
Ô Filomena…
Reserva o gás pro novo fogão
Que o pagode vai rolar a noite inteira
A feijoada já está no caldeirão
Não adianta, eu não vou fazer dieta
Na sobremesa traço o que tiver na mesa
A comida da Filó é a minha predileta
A comida da Filó é a minha predileta
A graça divina, Filó
Abençoou seu paladar
O cheiro subiu pro céu, ô Filó
Quem já foi vai retornar
Martinho usou a escultura angolana do pensador para representar os encontros da Kizomba, festa da raça. Assim conjugou sua ancestralidade com a arte e as reflexões sobre a vida, analisando a viabilidade do brasileiro e de nossa cultura, afirmando uma identidade que aprendemos a desprezar. desde que os portugueses nos trouxeram para cá. Portugal nos induziu a não aceitar nossa própria cultura porque ficaram com a sua cultura envergonhada diante da cultura francesa. Nós fomos levados a valorizar tudo o que era de fora e a buscar alguma coisa que fosse Brasil que não fosse do brasileiro, mas, então, surgiu Martinho da Vila, dentre os muitos que integram a resistência preta.
Muitos se uniram nesta construção de um país plural, com o entendimento da importância das rodas de samba e das ancestralidades preta e indígena. Hoje temos mulheres e homens de nossas tradições atuando em diferentes frentes, usando a capacidade de transformação das baianas do Recôncavo e dos líderes locais. Grupos novos e instituições negras surgem a cada dia, inovando e ampliando as propostas de conhecimento e reflexão sobre nossa história e culturas.
Martinho não fez sucessos apenas no Brasil, já que conquistou espaços e pessoas, se consagrando como festa, como vida, por ser show de brasilidade. Quando se vai a uma festa se busca alegria, e calor humano. Martinho é exatamente isto, como demonstra no livro de 2011, Fantasias, crenças e crendices, em que se coloca através dos personagens e traduz toda a sua alegria, fé na vida e em Deus. Logo na introdução do livro, afirma que crê na força da Palavra Divina e que desconfia de quem não se expõe. Situa a palavra samba como a sua preferida para indicar tudo de bom que está prestes a acontecer. Afirma que a expressão “vai dar samba” significa que é possível se alcançar os objetivos pretendidos ou alcançar os resultados desejados, sendo algo de bom que causa alegria a muita gente.
Ao falar de religião, não se coloca como profundo conhecedor do tema, buscando a palavra de autoridades religiosas e pesquisadores para dar maior relevância e credibilidade aos textos, realizando uma verdadeira viagem literária, tratando das ideias de agnósticos, católicos, evangélicos, umbandistas, candomblecistas, muçulmanos, judeus, sempre em busca da eterna paz.
Neste fevereiro de 2022, com tantas chuvas e desabamentos, ainda tendo a pandemia, precisamos seguir as propostas de quem ama o carnaval e acredita na força da vida, na certeza de que a comunidade preta brasileira, apesar de todas as dificuldades, com fé na força dos orixás EXU-movimento, Oxóssi-o caçador e Ogum-guerreiro, tem certeza de que abril vai dar samba.
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