O racismo estrutural da sociedade brasileira induz a mídia a situar sempre um cidadão preto como criminoso, como fez uma jornalista ao entrevistar Martinho da Vila , cidadão brasileiro, portador de poesia, musicalidade, identidade , sabedoria e que traz em seu nome artístico um território que toca o coração dos cariocas: Vila Isabel. Neste bairro, onde viveu Noel Rosa, encontramos a escola de samba Unidos de Vila Isabel, situada no Boulevard 28 de setembro, dia da Lei do Ventre Livre e que homenageará Martinho no próximo carnaval.
Criada em 1871 por José Maria da Silva Paranhos, a Lei do Ventre Livre trazia a proposta de abolir gradualmente a escravidão no país, determinando que os filhos de escravizadas nascidos a partir daquela data seriam considerados livres. Tal proposta criou dois cenários para dar a liberdade , pois previa que a mãe ficasse com os filhos até os 8 anos. Após esta idade, até 21 anos, poderia ser entregue a uma instituição do estado com direito a uma indenização pelos anos trabalhados ou ficar com a mãe aos cuidados do senhor.
Martinho da Vila é um dos sambistas que mais tem lutado contra o racismo, seja em suas composições musicais, suas produções artísticas e sua literatura. Com mais de quinze livros publicados, estabeleceu uma relação de aproximação da cultura negra do Brasil com os cantares e a literatura de Angola, fazendo uma verdadeira ponte entre o Brasil e os países africanos de expressão portuguesa. Através de seu projeto Kizomba- -encontro, confraternização- estabeleceu um contato da sociedade brasileira com a arte de artistas angolanos, moçambicanos e congoleses, trazendo, também, espetáculos de teatro e dança da África do Sul, do Quenia e dos Estados Unidos. Conseguiu criar um elo profundo entre o Rio de Janeiro e Angola, apresentando na Sala Cecilia Meireles um espetáculo de música angolana: O Canto Livre de Angola. Em seus discos introduziu ritmos angolanos e moçambicanos, além de palavras em quimbundo, língua falada pelos escravizados que aqui chegaram.. Acreditando no poder da educação fez um CD com Rildo Hora intitulado Você não me pega , dedicado ao seu filho Preto Ferreira, por acreditar que todas as crianças pretas precisam conhecer suas origens africanas, jogando capoeira, dançando jongo ;se orgulhando de seus ancestrais.
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A preocupação de Martinho com a educação brasileira é legitima. É preciso mudar as leis, transformando a mídia, que precisará encarar seriamente a questão racial, respeitando os pensadores pretos como ele, Emicida, Muniz Sodré e muitos outros. Se faz necessário cumprir leis como a 10639/03 que determina o ensino de cultura negra nas escolas. A educação é visceralmente política e o nosso modelo de educação tem que se estruturar em uma educação descolonizada, pautada em nosso povo. Um país como o Brasil tem como desafio reinventar uma forma própria de educação.
As escolas de samba mostram um caminho com sua forma peculiar de contar histórias. Para o carnaval de 2022 elas refletem sobre suas tradições, como a Mocidade ao evidenciar sua preocupação com o meio ambiente com seu enredo sobre Oxossi , o orixá das matas. que caça e preserva a natureza.. Na Portela teremos a manutenção das tradições do samba ao falar do Baobá, árvore sagrada, que mostra a africanidade da comunidade preta. Já a Grande Rio trata da capacidade de transformação da sociedade, mostrando o orixá EXU, responsável por comunicação e mudança. Elas sabem que a luta contra o racismo vem de longe, sendo que após 150 anos da Lei do Ventre Livre as mulheres pretas continuam sem ter liberdade para seus filhos, pois ela só é assegurada numa sociedade democrática e equânime, que aceite a diversidade e possibilite oportunidade igual para todos. Por conta disto o Salgueiro traz o enredo Resistência, evidenciando a luta pelos direitos humanos da população preta em nosso país.
A pressão dos grupos econômicos mais poderosos vem sendo exercida desde sempre, apresentando uma lógica política de que a riqueza do país deve beneficiar quem investe e não as pessoas do povo. Assim, os mais ricos são beneficiados em detrimento da população menos favorecida, basicamente a comunidade preta, não considerada cidadã, apesar de todas as leis criadas incluindo o 13 de maio e a Constituição de 1988.
A Constituição de 1988 é conhecida como democrática, mas o Brasil não é uma democracia racial porque a discriminação racial e o racismo são, ao mesmo tempo, uma prática e uma ideologia que assolam, implacavelmente, o cotidiano das pessoas negras, suas famílias e suas comunidades. . As elites e os brancos pobres não foram preparados para aceitar a mudança racial. Permanece intocada a questão da raça, da relação entre patrões e empregadas/os e de segurança pública.
Os policiais continuam perseguindo e matando a comunidade negra, como nos anos 30. Segundo o relatório do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESC) de 2019, intitulado A Cor da Violência: a bala não erra o alvo, nossa sociedade está organizada para usar o racismo como motor da violência. Apresentam em seu relatório números que comprovam que praticamente todos os mortos em ações policiais em cinco estados brasileiros são negros. Assim sendo, o debate de segurança pública em nossa sociedade tem de ser centrado em raça. Segundo nossa Constituição de 1988 todos são iguais perante a lei, mas verificamos que não são tão iguais assim. Comprovamos tal desigualdade neste momento de pandemia com mais de seiscentos mil mortos, sendo os que mais adoecem e morrem os das comunidades pobres e pretas. Conceição Evaristo em 2008, no seu Poemas de Recordação e outros momentos, esclarece:
“Os ossos de nossos antepassados
Colhem as nossas perenes lágrimas
Pelos mortos de hoje.
Os olhos de nossos antepassados,
Negras estrelas tingidas de sangue,
Elevam-se das profundezas do tempo
Cuidando de nossa dolorida memória.
A terra está coberta de valas
E a qualquer descuido de vida
A morte é certa.
A bala não erra o alvo, no escuro
Um corpo negro bambeia e dança
A certidão de óbito, os antigos sabem
Veio lavrada desde os negreiros.”
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