Uma das “obras” de Jair Bolsonaro, ao iniciar seu governo, foi a completa desorganização e desestruturação de toda a estrutura organizacional do poder Executivo. Como já tivemos a oportunidade de examinar em “A Presidência da República no Governo Bolsonaro”, no livro “O Bolsonarismo no Poder – Rupturas Institucionais e suas Consequências”, organizado pelos professores Geraldo Tadeu Monteiro e Frederico Lustosa (Anagrama, 2022), a reorganização do governo, com a redução de ministérios, e o novo desenho da Presidência da República, resultaram em uma anarquização sem precedentes, repleta de gigantismos, sobreposições e lacunas nas competências dos órgãos do Executivo.
Mas o mais grave é a desestruturação do Centro de Governo, conceito que, segundo a OCDE, reúne os órgãos que, em torno do presidente ou primeiro-ministro, respondem pelo aconselhamento direto ao chefe do Executivo, asseguram a coerência das políticas públicas, sua juridicidade e exequibilidade, sua aderência ao programa de governo e, em suma, a própria governança, mediante a produção de análises e informação para a tomada de decisão, a gestão da agenda, a coordenação governamental, a filtragem dos temas, o seu teste diante da necessidade de políticas baseadas em evidência, a comunicação de governo e a própria segurança jurídica das decisões presidenciais. Por definição, o Centro de Governo deve ser enxuto, ágil e eficiente, e altamente qualificado, técnica e politicamente, para exercer essas tarefas.
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Em recente artigo, Marcelo Estevão de Moraes, ex-secretário de Gestão do Ministério do Planejamento no governo Lula, aponta que “o governo federal abdicou de ter um Centro de Governo que assumisse o protagonismo da coordenação governamental. As pastas ministeriais palacianas que deveriam cumprir esse papel de condução das prioridades foram sucateadas pela alta rotatividade de titulares, pela prática clientelista e pela nomeação de indivíduos cujo predicado maior era o alinhamento incondicional a delírios ideológicos”.
Não bastasse a militarização dos postos-chave no entorno presidencial, e até mesmo a utilização, em massa, de servidores sem perfil e formação adequados para atuar no Centro de Governo (como o episódio da ocupação de cargos em comissão na Casa Civil por policiais rodoviários e policiais militares), o que se deu foi ainda mais grave: o esquartejamento da própria Casa Civil, num arranjo de conveniências, ou personograma, que transferiu desse órgão fundamental para a governança e análise das políticas públicas, para a Secretaria-Geral da Presidência a unidade responsável pelo exame da constitucionalidade e juridicidade dos atos a serem editados pelo presidente.
A Subchefia para Assuntos Jurídicos passou a ser subordinada a outro ministro, tornando ainda mais complexo o que já era difícil, enquanto permaneceu na Casa Civil uma “Subchefia de Assuntos Governamentais”, cujo nome, genérico, revela o esvaziamento do órgão, antes responsável pela análise e acompanhamento de políticas governamentais, exame de mérito das propostas normativas, representação em colegiados de políticas públicas, preparação da mensagem presidencial enviada ao Congresso em cada ano, a coordenação do PRO-REG e participação em órgãos da OCDE como os comitês de política regulatória e governança pública.
Paradoxalmente, ambas as unidades foram “turbinadas” com novos cargos em comissão, e passaram a contar com aumento de cerca de 50% em suas estruturas.
Ao mesmo tempo, novas unidades foram criadas na Casa Civil, gerando uma preocupante redundância. Uma “Secretaria Especial de Relações Governamentais” e uma “Secretaria Especial de Relações Externas” foram criadas, além de uma “Secretaria Executiva do Programa Nacional de Incentivo ao Voluntariado”. A própria Secretaria Executiva da Casa Civil passou a contar com uma megaestrutura, composta por três diretorias, uma delas para “Governança, Inovação e Conformidade”, algo inédito até então.
A Subchefia de Articulação e Monitoramento, outrora responsável pela gestão do Sistema de Informações e Monitoramento da Presidência e pela gestão das entregas, acabou esvaziada. Embora criado um Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas, composto por representantes da Casa Civil e Ministério da Economia, e Controladoria-Geral da União, quase nada se pode dizer da efetividade desse colegiado, fato apontado pela OCDE em seu Relatório sobre o Centro de Governo no Brasil em 2022.
Já a Secretaria-Geral, passou a contar em sua estrutura, além da já citada Subchefia para Assuntos Jurídicos, com uma Secretaria Especial de Modernização do Estado, composta por secretarias de “Monitoramento de Projetos de Modernização do Estado”, “Modernização da Administração Federal” e “Modernização Institucional e Regional”. Embora tais temas possam e devam estar sob o escrutínio do Centro de Governo, a forma como isso se deu revelou, apenas, o desvirtuamento de conceitos e um paralelismo a mais com o Ministério da Economia, que herdou as mesmas tarefas antes a cargo do Ministério do Planejamento.
Enquanto se desestruturava a Casa Civil e se inflava a SGPR, a desorganização atingia a comunicação de governo: a extinta Secretaria de Comunicação e o Porta-Voz presidencial, órgãos intrinsecamente relacionados a uma atividade típica de Centro de Governo (a comunicação com a sociedade), junto com a EBC (Empresa Brasileira de Comunicação), foram remetidas ao recriado Ministério das Comunicações, que deveria continuar a ser o órgão responsável pela prestação de serviços e políticas de comunicação (TV, Rádios, Correios, telefonia fixa e móvel, meios de comunicação em geral, internet e infraestruturas associadas) e supervisão de órgãos reguladores como a Anatel. E uma Secretaria Especial, sujeita ao Ministro das Comunicações, passou a ditar as regras para a comunicação de governo… Tudo isso, uma vez mais, para atender ao “personograma” em que se converteu o governo.
A extinção do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, criado em 2003 por Lula, é um capítulo à parte nessa obra destruidora. Se Lula, ao assumir, criou o CDES e recriou o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional, e promoveu uma ampliação da participação social sem precedentes, com o fortalecimento dos conselhos de políticas públicas e a realização regular e geral de conferências nacionais de políticas públicas, e Dilma regulamentou a participação por meio do Decreto 8.243, de 2014, que instituiu a Política Nacional de Participação Social e seus instrumentos, Bolsonaro, ao assumir, não só extinguiu esses conselhos, como revogou o Decreto 8.243. E, de uma penada, tentou extinguir dezenas de colegiados, o que foi impedido por decisões do STF, que asseguraram a validade dos conselhos criados por lei e impediram o esvaziamento da composição dos demais, com a exclusão de representações sociais.
O projeto “bolsonarista” de poder, infelizmente, esteve muito longe de pensar em instituições fortes, capazes, eficientes, transparentes e democráticas. Sobretudo, orientou a máquina pública no sentido de um alinhamento ao projeto autoritário que tinha em mente, descentralizando poder de forma anárquica e irresponsável, mas tendo em mente um conceito distorcido de “desesquerdização” da máquina governamental.
No campo das relações com o Congresso e a sociedade, a Secretaria de Governo passou a ter como foco, quase exclusivamente, as relações com o “Centrão” e a distribuição de benesses, instrumentalizando o orçamento impositivo e o “orçamento secreto” para garantir a governabilidade e sobrevivência política do Presidente. Sua estrutura, porém, também foi turbinada, passando a contar com 183 cargos e funções; para exercer as suas funções clássicas, ao final do Governa Dilma, eram necessários apenas 159 cargos. Mas a Segov, em 2022, passou a ter unidades até mesmo para tratar de “Governança e Desenvolvimento Institucional” e “Soluções Digitais”.
Bolsonaro, ao desorganizar o Centro de Governo, desvalorizou o serviço público de carreira, exceto na área de segurança pública e militares, esvaziou a Controladoria-Geral da União e os instrumentos de transparência, como a Lei de Acesso à Informação, e converteu o aparato presidencial em um “circo” voltado a viabilizar aventuras populistas. Até mesmo um “gabinete do ódio” foi instalado na Presidência, voltado a produzir e disseminar notícias falsas.
Reorganizar o Centro de Governo, e conferir a Lula condições para que possa governar com tranquilidade, segurança e eficiência, e articular e implementar projetos de desenvolvimento no âmbito federativo, em cooperação com os entes subnacionais, demanda um redesenho da Presidência, mas também dos Ministérios, que recoloque as funções críticas nos seus devidos lugares, permita que os cargos sejam providos por quem tenha a afinidade e o compromisso político com o sucesso do Governo, mas também capacidades técnicas adequadas, e garantir que o fluxo decisório seja restabelecido.
Um presidente que governe, de fato, precisa de tudo isso; um ministro da Casa Civil que saiba o seu papel e o exerça plenamente, também. Nada disso, porém, está presente nesse final de mandato, em que o desgoverno e a desorganização do Executivo são um grande desafio para Lula e a equipe de transição coordenada por Geraldo Alckmin.
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