Bob Luiz Botelho *
Não tem como não começar esse texto dizendo que ninguém é a favor da guerra e que meus referenciais de luta por justiça tem mais a ver com o Pr. Martin Luther King Jr e sua militância pacifista (e que não é passiva) diante da violência e da opressão do que com o movimento político armado e confrontos que coloquem vidas em risco. Violência não deve ser uma opção e inclusive como membro das Nações Unidas, aprendi que “não importa o que aconteça, a resposta sempre é diplomacia”. Ninguém deseja e se alegra com ataques violentos, com pessoas sendo feridas e mortas em nenhum contexto que seja.
Diante disso, quero te fazer uma pergunta que talvez soe estranho, mas ao longo do texto vai fazer sentido: quantos anos seu avô tinha quando começaram a usar a Bíblia para condenar pessoas LGBTI+?
Na primeira vez na história da humanidade que usaram a bíblia para dizer que textos como I Coríntios e I Timóteo se referiam à população LGBTI+, o meu avô tinha 19 anos de idade. Ele nasceu em 1937 e a primeira bíblia no mundo a traduzir as palavras do grego antigo como “homossexuais” foi publicada em 1946 e isso aconteceu lá nos Estados Unidos, em inglês. Ou seja, antes dos 19 anos de idade, meu avô, que sempre foi um cristão dedicado no estudo da Bíblia, jamais tinha aprendido a ler a Bíblia como um livro que me condenasse e só quando essa tradução chega no Brasil e passa a ser amplamente divulgada e difundida é que a maneira de compreender o cristianismo do meu avô passou a ser uma maneira que não concebesse a minha existência ou a minha possibilidade de fé.
Não estou querendo dizer, com isso, que meu avô não tinha preconceitos contra pessoas LGBTI+, até porque ele morreu quando eu tinha 17 anos de idade, então não é como se eu tivesse tido oportunidade de descobrir a opinião dele sobre esse tema. O que estou ponderando aqui é que, independente da posição sobre pessoas LGBTI+ que meu avô tivesse, antes de 1946 ele jamais usaria a bíblia para justificar esse preconceito.
Se você considera esse argumento legítimo na maneira como reivindicamos a leitura bíblica sobre nossa existência enquanto população LGBTI+, quero te dizer que a discussão sobre o conflito que acontece entre Palestina e Israel passa pela mesma honestidade na relação que temos que ter com a Bíblia.
Os textos que falam sobre Israel, povo escolhido, tribo de Israel e todas essas coisas são textos milenares, com mais de 2, 3 mil anos. Em toda a história do cristianismo, desde igreja primitiva, reforma protestante, primeira guerra mundial, nenhum cristão, pastor ou teólogo jamais ousaria dizer que esses textos bíblicos estavam se referindo a uma nação política que tem uma bandeira branca e azul com a estrela de Davi. A criação do país cuja bandeira está presente em muitos púlpitos no Brasil aconteceu em 1948, ou seja, se meu avô tinha 19 anos quando pela primeira vez na história utilizaram a Bíblia para me condenar como homem gay, meu avô tinha 21 anos quando pela primeira vez ousaram dizer que os textos bíblicos milenares se referiam a uma noção de Estado de Israel.
75 anos atrás, Israel como um Estado simplesmente não existia e ninguém usava os textos bíblicos (aliás, nem os judeus usavam os textos hebraicos) para reivindicações geopolíticas, porque Israel como nação não era um ideal, não era um objetivo e não era sequer um desejo. A criação do Estado de Israel surge como uma reação ao doloroso episódio do Holocausto na Segunda Guerra Mundial quando, em meio a uma ditadura nazista, os judeus foram colocados como uma “raça inferior” e tinham sua cidadania perseguida e sua existência ameaçada.
Como reação a este episódio, o povo judeu, com apoio da Organização das Nações Unidas e com um financiamento internacional imenso vindo da Europa e dos Estados Unidos, decidem que a afirmação de reparação histórica, social e cultural da identidade e humanidade deles passará por um passo jamais visto na história. Judeus são tão dignos de reconhecimento e respeito que criaram o próprio Estado-Nação para que judeus tenham direito ao próprio passaporte e as nações passem a carimbar sua presença como uma presença cidadã por si só.
O movimento de “povos virão e verão” e de que “vinde, provai e vede” envolveu um processo de trazer judeus que estavam dispersos pelo mundo pra que “voltem” para aquele território e se cadastrarem como cidadãos do Estado de Israel, passando a ter um novo RG e um novo passaporte. Importante perceber que “voltem” foi colocado entre aspas porque, segundo dados da Anistia Internacional, cerca de 68% das pessoas que fizeram esse movimento migratório na verdade nunca tinham vivido no território da Palestina e eram judeus que tinham nascido em outros países e possuíam outras nacionalidades e passariam a viver naquele território pela primeira vez em suas vidas.
Esse texto que escrevo é para dizer que, de todas as discussões possíveis sobre o complexo tema do conflito entre Palestina e Israel, é fundamental sabermos que esse assunto não é, nem de longe, um assunto bíblico ou um assunto profético-escatológico. Dizer que esses acontecimentos atuais estão relacionados com a interpretação das escrituras é dizer que “malakoi” e “arsenokoitai” são textos que nos condenam enquanto pessoas LGBTI+, e nós sabemos que essa relação não é justa conosco.
De todas as questões que envolvem esse debate, de todos os movimentos singelos de oração e mobilização de fé que fazemos, é fundamental explicar que “orar pela paz em Israel” nos diversos textos (Salmos 122, Jeremias 29 e tantos outros que estão sendo postados por aí) não significam e nunca se referiram a orar pelo país de bandeira branca e azul com a estrela de Davi no meio, e reitero que essa minha fala é uma fala muito respeitosa com o povo israelense e com esse país. É um debate mais complexo do que essas duas páginas de texto e meu objetivo aqui não é resolver o assunto. Tampouco ter pretensão de torná-lo simples, porque não é.
Meu objetivo aqui é apenas compreender que não podemos permitir que usem nossa fé como instrumentalização política de maneira manipulada e que sejamos, no mínimo, coerentes com a maneira como nossos corpos e nossa fé, que são vistos como subalternos e estão expostos à opressão, lida com discursos de massa e enquadramentos sociais.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
* Bob Luiz Botelho é membro Associado das Nações Unidas para assuntos de Religião (UN Religion Fellow) agenciado pelo CONIC e pela OutRight International. Estudante e pesquisador em Geografia da Religião pela UFPR, é teólogo de formação pentecostal e batista, tendo raíz e formação presbiteriana com uma passagem pelo adventismo. Fundador do Evangélicxs pela Diversidade, a primeira iniciativa evangélica e LGBTI+ da sociedade civil na América Latina, atuando na OEA e sendo o primeiro LGBT+ assumido a ser membro pleno da FTL (Fraternidade Teológica Latinoamericana). Reverendo pela IADLA-Brasil (Iglesia Antigua de Las Américas), é pastor na Comunidade MESA em Curitiba. Atuou por 7 anos em diversas organizações missionárias, onde estudou e deu aula de Missiologia e Missão Integral. Biblista formado pelo CEBI (Centro de Estudos Bíblicos), é professor de Exegese, Hermenêutica e Teologia Queer. Instagram: @bob.luizbotelho Youtube: youtube.com/@bobluizbotelho Contato por https://taggo.one/bob.luizbotelho
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