Na mesa do bar, você comenta com o seu amigo: preciso pintar o cabelo. No dia seguinte, seu telefone está lotado de anúncios sobre tinturas de cabelo. Quantas coincidências nos trazem esse mundo virtual, correto? Para tirar a prova se isso é coincidência ou não, eu procurei o professor, pesquisador e recém graduado em seu doutorado Daniel Marques, da Universidade Federal da Bahia, que pesquisou os problemas de privacidade no mundo moderno a partir dos smart speakers, ou seja, assistentes virtuais como Alexa, da Amazon, ou GoogleHome, da Google, como pode ser visto no episódio do podcast Tecnopolítica.
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Muito comuns no primeiro mundo, este é um mercado que ainda atinge apenas 4% da população brasileira, e que está concentrada na classe média e na classe média alta, e que vive nas áreas urbanas, sendo jovens adultos. Ou seja, estamos falando de um nicho de mercado que é fã da tecnologia e que busca praticidade. A pergunta do Daniel era: será que estamos sendo vigiados o tempo todo por esses assistentes virtuais, esses pequenos robozinhos?
“Os smart speaker, como qualquer outro dispositivo conectado à internet, eles tem a capacidade de coletar dados. Então eles estão sempre ouvindo na espera da palavra de ativação, para poder responder a uma pergunta ou realizar uma tarefa. O que acontece é que empresas como Google, Amazon, Apple e outras elas afirmam que elas só começam a gravar quando essa palavra de ativação é reconhecida. A questão é que a gente não tem como auditar este processo, porque são dispositivos proprietários dessas grandes empresas, que são as Big Techs. O que a gente sabe é que esses dispositivos tendem a gravar mais do que deveriam. Os usuários são costumeiramente surpreendidos quando eles resolvem investigar e ver que os speakers já coletaram. O que diz respeito à vigilância, essas empresas dizem que esses dados são para melhorar a experiência do usuário, como melhor a gravação ou são gravados. As preocupações são legítimas sobre privacidade e segurança, tem questões sobre quem tem acesso aos dados, como eles podem ser usados, etc. Como a gente não tem acesso às políticas das empresas, esses dispositivos acabam funcionando como caixas pretas, que a gente tem pouco ou quase nenhum acesso ou transparência”.
É a isso que a pesquisadora norte americana Shoshana Zuboff, de Harvard, chama de capitalismo de vigilância? Qual é a relação entre os dispositivos que escutam o nebuloso mundo da publicidade, como diz Zuboff?
Márcio, qual era o sonho de todo publicitário? Era ler o seu pensamento, certo? Quando mais invasivo fosse o dispositivo de “espionagem” melhor? O professor Daniel Marques percebeu que esses assistentes virtuais, ao entrarem em nossos quartos e em nossas vidas, e coletarem todos os dados possíveis, por meio de sistemas de escutas permanente, estavam levando nossa privacidade, nossa vida privada, para o ambiente das Big Techs, para alimentar uma indústria de vende de produtos e serviços nessas plataformas digitais. Quanto mais dados, melhor e mais personalizado o anúncio. E, lembre-se, está tudo conectado, e-mails, redes sociais, assistentes virtuais. Marque lembra que até as nossas emoções são capturadas por esses dispositivos eletrônicos:
“Existem patentes que demonstram a capacidade desses agentes de voz de reconhecer os estados emocionais dos usuários para oferecer produtos e serviços. A interação pode ser mais humana quando eles se tornaram mais avançados, mas ainda são máquinas. Mesmo assim a gente pode considerar que o uso desses dispositivos pode impactar nossas interações humanas. Se a gente passa muito tempo interagindo com elas, isso pode afetar a nossas habilidades sociais e pode produzir vieses sobre como a gente entende as novas interações e como o terceiro entende essa interação, não é aleatória essas assistentes virtuais sejam, na maioria esmagadora, vozes femininas e que tem tom de subserviência, que tem uma entidade que é servil que domestica os usuários e que é domestica pelo usuário, pois o usuário precisa se submeter à forma como ela funciona.”
E como a gente pode vir o jogo com relação a essa vigilância que serve para nos direcionar publicidade? Será que a gente não se beneficia mais do que as empresas com todos os serviços que estão sendo oferecidos gratuitamente? A lei geral de proteção de dados não é suficiente para dar ao usuário autonomia sobre quais dados que eles desejam compartilhar e com quem eles desejam compartilhar?
A lei de proteção de dados diz que é preciso justificar a quantidade de dados que são extraídos do usuário. Há que ser proporcional e isso não corresponde a uma coleta de forma massificada, coletiva e agregada, como ocorre hoje. O pesquisador cria a metáfora do “sujeito-dado” para explicar que as Big Techs, com a dataficação, ou seja, o extrativismo de dados, alimenta a construção de perfis performáticos dos usuários, o sujeito-dado.
O curioso é que todo mundo quer lucrar com esse modelo das plataformas e seus assistentes virtuais de nos inundar de publicidade, da tintura aos pés, pois um dos remédios para essa sociedade vigiada é justamente nós, os usuários, passarmos a lucrar com os dados.
O professor Daniel acha que inverter os papéis não vai mudar em nada o fato de que a internet se torna uma arma de propaganda, e não uma promessa de libertação cultural e informacional da sociedade.
“Uma das tendências que tem surgido é a ideia de monetização dos dados dos usuários, de os usuários poderem ser compensados por seus dados pessoais e essa ideias tem ganhado força, em que usuário venderiam seus dados mediante uma compensação direta, mas não acho uma boa ideia pois serviria para naturalizar o processo da coleta massiva de dados e o avanço do capitalismo de vigilância e o capitalismo de plataforma, com a anuência do usuário, que não entendem muito bem o processo e não vejo como boa saída. Em termos de controle, temos a lei geral europeia e a lei de proteção de dados brasileiras que permitem quais dados se quer trabalhar, e com quem. Se a gente não olhar para o design, a gente não vai entender o impacto profundo que essas tecnologias têm na vida das pessoas”.
O que seria uma forma de empoderamento digital? Como funcionam os algoritmos, que permitem o processamento desses dados? Como questionar o desenvolvimento de novas formas de cidadania? Como colocar interesse dos usuários em primeiro lugar, antes do interesse das Big Techs? Como promover habilidades a partir de uma perspectiva crítica e cidadã para fazer face aos interesses comerciais? Como proteger a privacidade que foi ameaçada pela tecnologia, que hoje é tão importante para o mundo moderno e contemporâneo? Como não ser alvo de fraudes, crimes e roubo de identidade com o uso indevido de dados?
Vamos terminar por aqui com tantas questões, em que a gente ainda pode se perguntar: será que eu quero ser vigiado por uma assistente virtual, como mostra a ficção e hollywood em Filmes como 1984, Her ou a série Black Mirror!
Até onde eu vou com a minha intimidade? Até que ponto eu renuncio à minha autonomia? Até quanto eu quero ser uma tag de publicidade?
O comentário no Papo de Futuro vai ao ar originalmente pela Rádio Câmara, às terças-feiras, às 8h, em 96,9 FM Brasília.
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